Entrevistas

Arnaldo Baptista: Singin’ Alone

Entrevista exclusiva realizada por Marcelo Fróes, Marcos Petrillo e Leonardo Rivera num hotel em Copacabana, zona sul carioca, para o “International Magazine” no dia 3 de maio de 1996 – por ocasião do relançamento de “Singin’ Alone” em CD pela Virgin.

Fale sobre essa idéia de relançar seus discos pela Virgin.
Às vezes acontece na vida alguma coisa difícil de explicar, e pela qual fica difícil nomear uma pessoa que seja a “culpada” pela coisa, né? Então parece que está acontecendo todo este revival de Mutantes, eu não sei. Vamos ver o que acontece com relação à aceitação pública de tudo isso. Atualmente, eu vejo na televisão que entram em revival coisas que seriam difíceis de se lembrar pelo nome. Gente da Jovem Guarda… como Waldirene, então a gente se perde um pouco.

E quanto aos discos que a Virgin vai lançar? Por enquanto, só está saindo o “Singin’ Alone”. Você acho que isto vai de dar gosto de voltar a gravar?
Eu tenho a impressão de que é a parte mais importante em relação à minha imagem pública, né? A gente pode explicar que eu gravo todos os instrumentos, né? Mas daí alcançar a mente de uma pessoa do IBOPE… Taí, esse Arnaldo Antunes conseguiu explicar em palavras. Eu achei bonito, como se eu variasse o ritmo da bateria e coordenasse o contrabaixo, dando uma corte etc e tal. Nesse sentido, como foi a primeira vez que eu trabalhei tocando todos os instrumentos, vai ser legal porque a aceitação passa a ser mais nacional, ao invés de uma distribuição algo relapsa ou faltosa somente por São Paulo.

Como é que você vê hoje o trabalho dos Mutantes sendo reconhecido por adolescentes e encarado como algo futurista?
Eu tenho a impressão de que neste livro recentemente lançado houve uma certa disparidade quanto a eu ser o líder, né? Porque eu fazia coisas que, como eu acabei de relatar, às vezes a gente não conseguia dizer. Mas eu fazia algumas coisas com os Mutantes que eu não gostava totalmente, por isso é que eu parti para uma carreira solo. Quanto à profundidade do alcance do público, deve ser no sentido de perfeição ou utopia. Eu espero que o trabalho seja encarado assim e, com este tributo que foi feito, ocorre-me agora a palavra interpretação. É algo difícil se fazer um som exatamente igual, às vezes fica meio duro de aguentar certas tentativas de imitar ou sei lá o quê. Interpretação tem a ver com a filosofia de cada pessoa que a faz e ao nosso som em relação a ela. Foi legal, nesse sentido, eu gostei da voz do Arnaldo. É bem grave, bonita. O Barão Vermelho também foi legal, no sentido de espírito, eles transmitiram isso na música. E assim vai adiante. A menina do Pato Fu tem a voz bem parecida com a da Rita, né? A gente foi levando. O pessoal do Planet Hemp também faz umas coisas em inglês, bem estranhas. Eu acho que ficou bem interessante.

Quanto à sonoridade dos Mutantes, como é que você encara este culto ao material original?
Eu creio que seja muito difícil dizer que os Mutantes são isso, num sentido de aceitação. Durante muitos LPs eu fui contrabaixista e isso é bem diferente de eu sendo o tecladista. Comigo fora do instrumento, o contrabaixo ficou algo meio voando… com um som bem agudo, bem tipo Pink Floyd e Yes. Quando eu tocava o instrumento, ficava algo mais Deep Purple, algo mais terra. É difícil especificar se os Mutantes foram isso. A gente foi levando e agora vê o resultado, com a aceitação.

E quanto aos jovens estarem curtindo isso?
Eu tenho a impressão de que agora chegou a hora de eu dizer que estou vivendo uma segunda infância. Com a minha quase-morte, agora estou com uns 14 anos. Eu tenho uma coisa que tem a ver com o coração desse pessoal jovem e com aquilo que os leva adiante, sejam utopias ou sejam deuses.

Você costuma acompanhar o surgimento de novas bandas?
Isso é interessante. Outro dia a televisão que no Brasil existem milhares bandas de rock’n’roll, então isso é tão vasto que a gente se perde em explicações vagas. A gente acaba não se deixando levar por nada em específico.

Você acha que a quantidade dilui um pouco o interesse?
Exato. Concordo.

Quanto vocês fizeram Domingo No Parque, com Gilberto Gil, vocês tinham ainda que uma vaga idéia do que poderia acontecer em termos de multiplicação de formação de bandas?
Naquela época, existia uma distância enorme entre o rock’n’roll e o Brasil. Hoje em dia, eu ando em São Paulo e vejo Marshall, Ludwig e Fender nas lojas. Na época em que os Mutantes começaram, existia um amplificador de uns 6 watts que a gente entrava no palco carregando. Hoje dia, existe menos diferença entre a música do exterior e a daqui. Naquela época bem do começo, era bem distante. Bossa Nova ainda me cheirava a jazz, de uma certa forma. Jovem Guarda já era mais diferente.

Nos primeiros grupos, vocês tinham uma influência do jazz, né?
Não, numa carreira pessoal – indepentedente dos Mutantes – eu é que tive um conjunto chamado Sand’s Trio, “trio das areias”, no qual eu era o contrabaixista. Eu também tinha um conjunto de folk songs. Eu era independente dos Mutantes neste sentido de jazz. Não tinha nada a ver com os Mutantes. Eles não entendiam disso, para mim eles ficavam bem distantes do jazz… no sentido de harmonia etc.

Fale da influência de sua mãe, você levou pros Mutantes?
Em questão de descendência, papai era poeta e escreveu quatro livros. Então foi interessante, num sentido de inspiração em letras. Como tecladista, mamãe foi importante no momento em que eu mesmo comecei a fazer o teclado. Porque, quando eu era contrabaixista, eu era bem distante dela. Ela ficou bem forte no meu espírito quando eu comecei a tocar teclados. A distância que eu sentia dela é algo difícil de botar em palavras agora. Minha mãe é maravilhosa, ela já deu concertos na Áustria, com orquestra, mas ela é incapaz de tocar uma música que não seja escrita. Se você falar que é em dó maior, não adianta, ela não consegue tocar de ouvido. Ela fica totalmente perdida! (risos)

Como é que os Mutantes tiravam aquele som, com tão pouca tecnologia na época?
É uma coisa estranha, mas quando a gente fala de pouca tecnologia existe o “status” e o “algo mais” que a gente tem a oferecer. Em relação à gente ter começado algo naquela época, se a gente tinha um amplificador de 30 watts, era melhor que o do resto, pois todo mundo tinha 6 watts. Então era nessa que a gente entrava. Por exemplo, a gente foi a primeira pessoa que usou o wah wah. Hoje em dia, todo mundo tem. Pra gente, foi difícil alcançar isso. Atualmente, eu vejo um exemplo que é bem íntimo meu. Eu ainda não consegui colocá-lo em palavras, mas talvez vocês não tenham consciência disso. Na guitarra do meu irmão existia uma “maldição”. Era a guitarra dourada. Qualquer coisa que for falada será amaldiçoada. Meu irmão copiou de Tutancamon, eu acho. É que ela é a única que existe com o distorcedor dentro. Meu irmão cobriu tudo de ouro, para não dar barulho… Mas isso é o que eu nunca consegui falar. A guitarra era muito falha, porque o captador tinha um ímã fraco. Então ele ligava e saía um barulho surpreendente! (risos)

Na época da “maldição”, por acaso vocês estudavam o mago Crowley?
Eu nem sei quem ele é. (…) Pode ser que seja uma pessoa que eu conheci num hotel no Panamá, um hindú de bata que disseram ser o gurú dos Beatles.

Não, esse era o Maharishi.
Ah é, então o Crowley era um inglês?

Com relação ao trabalho desenvolvido depois da saída dos Mutantes, como foi mudar e fazer novos trabalhos, com uma nova filosofia?
Com os Mutantes, a gente fazia na música uma pessoa só. Os egos se reuniam e faziam da música um resultado final. Então, existia um problema presente.

Com estes revivals, como é o dos Sex Pistols, não poderia haver interesse de reunir os Mutantes para algo atual?
Eu novamente entraria em conflito com minha palavra de líder. Eu aceitaria isso otimamente bem. Eu adoraria que isso acontecesse… se os Mutantes usassem somente instrumentos Gibson. Do contrário, eu não aceitaria isso de forma alguma.

Por quê?
Porque nem o baixista dos Mutantes o meu irmão entende. Eles se prendem à imagem do baixista Liminha como “o deus Chris Squire do Yes”, usando os mesmos instrumentos e tudo mais. Sérgio tem Jimi Hendrix como um Deus, usando os mesmos instrumentos. Então até eu conseguir fazer os Mutantes abandonarem esta idéia, deixando pra lá essas pessoas que eu pessoalmente não gosto, devido aos instrumentos, eu não encaro essa idéia de volta dos Mutantes numa boa.

Este seria o grande empecilho?
Esta foi a razão primordial de eu até ter mandado a Rita Lee embora.

Como é que foi este episódio?
É interessante, eu estava perdido em memórias e não conseguia levar isso adiante de forma concisa. Até que o Carlos Callado elucidou a questão no programa do Jô Soares, dizendo: “Arnaldo a mandou embora”. Então eu lembrei porquê é que isso aconteceu. Eu estava lá com ela e encarei a coisa da seguinte forma: independente dos Mutantes haver sido o harém dela, à exceção do baterista (que é uma pessoa que eu adoro, o único mutante contra o qual eu nada tenho contra), eu falei que o baterista estava com disritmia. A guitarra Fender tinha pouco volume e o contrabaixo, menos ainda. O Rickenbaker é um instrumento maravilhoso, basta ligar no amplificador que sai um som lindo, porém num conjunto o som do palco não dava pra ouvir. Ninguém ouvia o Liminha tocando, então o baterista ficava perdido. O baixo forte chegava com um certo atraso e ficava aquela coisa! (risos)

E quanto à saída da Rita?
Então eu vi que o conjunto estava ficando… – eu sei que é difícil de se falar, mas estava ficando um pouco “gay”. (risos) Num sentido de utopia, na época eu pensei: “Talvez os Mutantes aceitassem Gibson!” Não passou de um sonho, mas agora eu estou numa carreira solo para tentar colocar isso em música.

Qual foi o impedimento para eles não terem aceitado isso?
É como eu acabei de relatar. É impossível explicar isso a eles, né? É a utopia de um estereótipo de guitarrista como Hendrix, baixista como Squire etc. É uma ilusão… mas é difícil explicar isso a eles.

Em relação aos trabalhos desenvolvidos pela Rita e pelo Sérgio, você teria algo a dizer?
Pra falar a verdade, eu nunca encarei a fundo o que eles fizeram. Na época em que eu os abandonei, eu tinha a minha mente e a minha habilidade para escrever letras com as barreiras de limitação. “O contrabaixo não pode ser igual a Cream ou a Mountain, tem que ser Yes!” “Guitarra? Só Hendrix!” E assim por diante, então a partir do momento em que eu me desliguei deles na minha mente eu também me desliguei dessa carreira deles. Para responder a sua pergunta, eu não consigo compreender o trabalho deles porque eu não o ouço.

O que você ouve, atualmente?
Ótima pergunta. Eu ouço um conjunto que não existe, mas eu o escuto como se reunisse as pessoas que eu mais gosto. Na bateria seria Nigel Olsson, do Elton John, e no contrabaixo Jack Bruce, que tocava no Cream. Na guitarra, teríamos Jimmy Page, do Led Zeppelin, e nos teclados, o Tony Kaye, do “Yes Album”. Além disso, teríamos a Diana Ross no vocal. Ela tem um punch bom. Numa área de composição, de letras e de sonhos, tenho o Mike Oldfield. Ele tem um som mais ou menos bonito.

Em termos de bandas novas, artistas que estão começando a emergir, você tem alguma coisa que tenha escutado e gostado? Tipo o Nirvana, por exemplo.
Eu não entrei muito profundamente no trabalho deles, e eu não tenho nada muito profundo a dizer sobre trabalhos novos e recentes. Gosto muito de trabalhos tipo o do Mountain.

O caso é que o Nirvana tem aquela estória do bilhete que o Kurt Cobain deixou para você, quando esteve aqui no início de 1993.
Ah é, eu me lembro. Com isso, vem de novo aquele negócio de imagem pública e estereótipo. Ele entrou nessa e se correspondeu comigo, mandando aquele bilhete. Minha esposa o guardava até bem pouco, em sua bolsa.

O quê você percebeu neste bilhete?
Eu sentí que ele estava tentando entrar em contato. Eu até escrevi um livro com este mesmo nome, “Um Jato de Energia Retilínea”. Ele tentou encontrar um apoio em algum lugar e tentou a meu lado. O resultado foi isso.

Como é que você a arte dele um cara que veio inovar o rock e acabou tendo um destino tão trágico?
O que eu ouvi do Nirvana foi algo bem apocalíptico, em relação ao que está acontecendo. A gente sentia algo agressivo, algo recíproco entre a reclamação e seu espírito. Mas nada que fosse exato.

Nada que você goste? Como é que você avalia a arte dele?
Eu a acho bem caótica, num sentido que vou explicar melhor traçando um paralelo. Seria no sentido de uma pessoa que saísse na rua com quatro relógios Rolex, por exemplo. A gente se assustaria mas acabaria esquecendo. É algo assim.

Como os Sex Pistols, que tiveram sua época?
Não, eu coloco a coisa num lado filosófico. É algo pesado, pra mim o Sex Pistols tinha uma conexão com o homossexualismo. Na Inglaterra, eles tinham a ver com o terceiro sexo etc. Na música deles, isso se tornou presente. Eu não gosto muito de Sex Pistols, não.

Estávamos falando sobre bandas novas. Há pouco, você falou sobre sentir-se novamente com 14 anos. Geralmente, as pessoas que têm tendência à música começam a tocar e a formar grupos nesta idade. Com este relançamento, com esta vida nova e com esta idade tão jovial, você sente vontade de recomeçar? Você acha que a regravação de Balada do Louco pode representar um recomeço? Você tem idéias para um novo disco? Novas músicas?
A Terra encontra-se no apogeu da era ígnea. Ou seja, o ser humano aprendeu a fazer pouco e durante muitos anos viveu assim. Hoje em dia, eles estão acabando com o oxigênio da Terra, enquanto existe a energia elétrica solar, que é grátis e não polui. Eu estou assim, pensando nestas coisas…

Seria inspiração para um trabalho conceitual?
Exato. Filosoficamente, a idéia é esta idade ígnea passar a ser a idade da pedra, novamente.

E quanto à chegada da Era de Aquarius? Como é que você a vê?
Puxa, segundo a lenda da Fifth Dimension, eu vejo que Júpiter se alinhou com Marte numa época passada. A sétima casa já passou por isso. Eles falam na letra da música que é o começo da Era de Aquarius. Eu a encaro neste sentido, a gente está começando a entrar na Era de Aquarius. É isso que eu falei sobre a energia solar, passa a ser um sonho… que nem John Lennon em Imagine: “vocês podem dizer que eu sou um sonhador, mas eu não sou o único”. Eu adoro fogão elétrico, em Nova Iorque eles usam fogões assim. Mas até conseguir explicar isso, fica impossível. Então fica tudo com gás, poluição etc. Mas tudo isso tem a ver com a alma. Por exemplo, eu falo mal do fogo mas eu não consigo abandonar a lareira! (risos)

Você tem planos concretos? Ou você só está acompanhando o relançamento?
O que se pode fazer, para comparar o que rolava antigamente e o que pode rolar agora? Naquela época, eu tomei contato com um som que ninguém entendeu. Eu fui à casa do audiófilo Armando Salles no Ibirapuera e foi ele quem me ensinou. Enquanto os Mutantes tinham mais de 1000 watts em transistors, ele tinha 100 watts que ganhavam dos nossos. Hoje eu estou na mesma, porque vi um alto falante fabricado pela Nasa há uns dois meses. O alto falante faz tremer a parede. Então eu estou numa de planejar o meu futuro e de tocar com este alto falante. E tem este amplificador com o qual eu sonho, e que agora eu vou adquirir. Estou pressentindo uma coisa faraônica em relação ao meu contato com a música.

Você está falando em termos de show ou em termos de disco?
Após eu conseguir este alto falante, farei um grande show.

Você pretende resgatar alguma coisa, dos Mutantes ou de sua carreira solo?
Sem dúvida. Os Mutantes foram muito atingidos por um pintor, mas a gente se perdia porque ele era totalmente independente, o que jamais acontece com os músicos. Se o músico vai pra Inglaterra e lá tem que conhecer outros músicos, para poder tocar. Mas o pintor tem a tela, o pincel e as tintas onde estiver. Na Grécia, na China e no Brasil. Agora, com a música, eu estou igual. Estou tocando sozinho, tentando planejar meu deslocamento.

E quanto a uma nova banda?
É aí que me lembro do Paul McCartney, que é uma pessoa que também entra nessa de fazer tudo sozinho. Ele levou o trabalho adiante, no sentido em que vocês me fizeram a pergunta. O nome do último trabalho dele é “Movin’ On”, ou seja, a movimentação é trabalhosa. Envolve transporte e locomoção, caminhões e aviões. É difícil… mas eu vou ficar que nem o Paul, “moving”. Não quero nem saber, terei um alicerce nômade.

Foi complicado fazer o “Loki”? Foi difícil convencer a gravadora a lançá-lo?
Sim, mais no sentido dos músicos que tocaram comigo. O baterista foi ótimo mas o contrabaixista ainda reclamou: “Tem que mudar, tá muito Sérgio Dias!” Eu falei: “Não, tá pronto!” Foi neste sentido que o “Loki” saiu, como uma demolição dos Mutantes.

Você o gravou rapidamente?
O “Loki” foi bem rápido.

E os outros, também?
Isso muda bastante, porque os discos são gravados em canais e às vezes é difícil. O “Loki” foi gravado em três canais e tudo rolou junto. É algo estranho, né? Eu não me lembro exatamente como foi, mas foi assim.

Foi gravado ao vivo no estúdio?
Foi. Sem voz, né.

Fale um pouco sobre o “Sanguinho Novo”, que foi aquela coletânea que fizeram em homenagem a você.
Eu vi que foi tudo feito com Rickenbaker e Fender! Nenhuma Gibson! (risos) Fica até difícil colocar isso em palavras! (mais risos)

Você acha que isso invalida o projeto?
Invalida, porque eu tenho uma péssima impressão. Eu estava conversando sobre guitarra com um amigo. O sonho do músico é muitas vezes o de chegar ao palco, ligar o instrumento, tocar, arrasar, uma menina ouvir e ele entrar em contato com ela. Eu vejo que o sonho do músico pode não ser tão “grande” assim, né?

Voltando ao revival dos Mutantes, como é que você acha que o grupo soaria hoje em dia? Existiria a mesma química?
Absolutamente. Você usou um termo que eu adorei. “Como é que soaria isso?” Eu não consigo imaginar como é que soaria o espírito do meu irmão ou o do contrabaixista. É só contra eles que eu sou, eu não sou contra o baterista. Como é que soariam os espíritos deles? Nem ouso imaginar.

Então você nem imagina?
Nunca. Jimi Hendrix com uma Gibson? Uma vez ele tocou com uma, ela é a guitarra dos meus sonhos, mas foi horrível. O Hendrix usava Fender, com um montão de distorcedores no máximo. Não sei se ele era guerreiro no Vietnã, mas ele botava tudo no máximo! (risos) Ele fez isso com a Gibson e, como ela é fortíssima, foi um esporro danado. Ficou horrível! Então é estranho falar…

Numa de suas últimas entrevistas aqui no Rio, a Rita comentou que os Mutantes quase voltaram quando de um projeto em homenagem ao Gilberto Gil. Ela disse que vocês chegaram a conversar sobre isso mas que nada rolou, em função de uma questão financeira. Ela já comentou isso diversas vezes, inclusive que teria partido de um dos irmãos Baptista.
Eu não lembro disso ter acontecido. É até bom você ter falado sobre isso, assim se esclarece. Da minha parte, isso nunca rolou.

Então quer dizer que existe essa possibilidade?
É uma coisa da qual eu duvido muito. Passa a ser uma utopia, até. Mas se o Liminha usar Gibson, igual a Jack Bruce, e se o meu irmão usar Gibson, igual a Jimmy Page, talvez. Mas eu creio que seja impossível, pelo espírito deles. É neste sentido que se fala que eu sou “contra” eles, parece que eu não gosto deles. Eu adoro eles, porque eles também têm coisas lindas. Mas bastaria que eles aceitassem esta idéia.

Então você seria o produtor?
Eu seria uma coisa que também ocorreu-me agora há pouco. No palco, pinta uma oferta. Durante o rock’n’roll ele está sempre presente, menos com o Liminha e com a Rita. Eles ficam muito dentro do estúdio, envolvidos com selos, companhias e editoras. Eu não me lembro de nada disso, eu fico envolvido com marcas e fábricas de alto falantes. É bem distante, o disco da música, neste tipo de contexto.

Das músicas que os Mutantes fizeram, quais são as que você acha mais interessantes e das quais você mais gosta?
Ando Meio Desligado é muito boa, realmente. Tem uma outra que a gente gravou já sem a Rita, em “O A e o Z”, que era a faixa título. Cada um fazia o melhor do seu sonho.

E quanto à química, se vocês voltassem?
É, eu não falei sobre a química quando respondi a pergunta. Como é que seria esta química com outros instrumentos? Eu acho que não daria certo. Outra coisa que seria difícil de explicar agora, mas nem Beatles nem Rolling Stones tinham garota na formação. Isso é algo importante. A gente se perde no problema.

Você acha que isso marcou?
Foi bem marcante, num sentido diferente… porque a gente ficava numa expectativa que podia ou não ser rompida. Mas sempre pintava um espírito de palco, com fantasias, razões, filosofias e noivas grávidas, assim por diante.

Você leu o livro do Carlos Callado?
Ainda não totalmente, eu tive uma certa reserva porque eu ainda estou um pouco “careta” para ler o livro. Espero alcançar alguma coisa para poder expandir-me e ler o livro. Eu estou colhendo o resultado, com relação à aceitação de todos que leram o livro.

E o seu período pós-Mutantes, com projetos como a Patrulha do Espaço?
Ah, dividiu-se tanto… Uma coisa que eu pensei em falar e nunca falei: eu sou um ser que entra em contato com um instrumento e muda a maneira de falar, de tocar e de filosofar. No comecinho dos Mutantes, eu tinha um contrabaixo Del Vecchio. Depois, eu tive uma imitação que o meu irmão fez do Fender Jazz Bass. Mas eu mudava, agora eu tenho um Gibson. Eu vou mudando, em função dos instrumentos, como pessoa em si.

E agora? Você está mais tranquilo? Está numa fase boa?
Sem dúvida, eu acho que você está se referindo ao espírito. Na época dos Mutantes, eu adorava Astronomia e pertencia à Associação dos Amantes de Astronomia de São Paulo. A gente construía telescópios em casa. Tem esta parte da minha que envolve automóveis e motocicletas, com as quais eu corria. Há pouco tempo, eu construí em casa um giroscópio. Quando eu faço exercícios físicos, meço o coração e ele chega a 120, 140 e 160. Quando eu fiz o giroscópio, eu estava com coração a 120, sem exercício. Eu estou numa de medir o meu comportamento mental e espiritual, em relação ao equipamento que eu possuo. Às vezes, eu me sinto preso e como se me faltasse algo. Por exemplo, eu me sinto preso porque eu não tenho o endereço de uma firma, porque ela é a única que fabrica um equalizador que alcança o mínimo. Chama-se S.A.E. e eu não tenho seu endereço. Isso me impede de ir adiante em certos fatores, porque eu não posso por graves e agudos em meu som.

Por quê? Você quer buscar uma sonoridade muito particular sua, que só existe na sua cabeça e você quer exteriorizar?
Exatamente. Perfeito. Se eu estou tocando o bumbo da bateria e isso é alto demais, eu não posso baixar o volume geral. Modificaria tudo. Eu tenho que ter este equalizador, para baixar somente o grave do bumbo. Aí ficaria perfeito. Mas eu vou conseguir este endereço logo…

E este lado de compositor? Você não tem vontade de voltar a exercitá-lo, independentemente das limitações de equipamento? E quanto às pinturas?
Eu tenho escrito livros. Já tentei editá-los mas nunca o fiz, apesar de ter uns seis prontos, todos acima de 200 páginas. Quanto às pinturas, eu tento colocar um paralelo entre a literatura, a música e a pintura. Às vezes, eu consigo. Hoje cedo eu pintei no quarto uma coisa que eu ainda tenho emperrada. Eu tenho um ideal de música que é o som esferofônico, esférico mesmo. Seria uma espécie de “globo da morte”, no qual a moto anda no circo. Seria isso, com alto falantes nas paredes e piso ortofônico, sobre o qual andaríamos mas que seria “transparente” ao som. Seria o círculo da morte, com todos aqueles alto falantes à volta de mim e do meu público! É um sonho que eu vou tentar levar adiante.

Depois de um próximo disco, você pretende levá-lo para a estrada, com esta característica?
Exato, sem dúvida. Não que eu tenha dito que a pessoa que usa Gibson é perfeita. Existem grupos que servem-se de Gibson, mas nem por isso são perfeitos. Eu vou tentar agremiar tudo isso de ideal no sentido de conseguir traduzir isso. Eu até ouso dizer o título de uma das novas músicas. Não é A Balada do Louco, mas o Rock’n’Roll do Louco.

Como seria a letra?
Eu já a escrevi diversas vezes e estou tentando chegar a um resultado final. Está quase pronta. Será uma balada com instrumentos Gibson, o que a transforma num rock! (risos)

Você ainda mantém contato com o pessoal da Tropicália?
Ah sim, Gilberto Gil fez um show há alguns anos em Juiz de Fora. Eu fui lá e conversei com ele. Tim Maia, eu o encontrei recentemente num show e ele foi ótimo pra mim. Eu tenho mantido contato, mais no sentido deles irem lá para fazer show. Até o Lulu Santos foi lá, eu entrei em contato com ele. Mas nada passa disso. Eles vão lá, tocam, eu assisto e depois nós conversamos.

Qual foi o verdadeiro papel dos Mutantes na Tropicália?
Foi em relação a Gil. Às vezes rola uma certa confusão, porque também havia o Caetano. Mas a gente era algo mais distante, pois também existia um conjunto do qual eu gostava muito: os Beat Boys, uns argentinos liderados pelo Tony Osanah. O Gil é uma pessoa que é bem música, enquanto o Caetano é bem letra e poesia. O Gil é que nos colocou na Tropicália. O Ronnie Von falou da gente pro Gil e deu certo. Quando nós tocamos É Proibido Proibir com o Caetano e fomos vaiados, viramos de costas e continuamos tocando! (risos)

Você acha que aquele pessoal da Tropicália ainda faz um trabalho representativo de toda aquela revolução?
É como eu falei agora há pouco, Gilberto Gil é bem música… e o Caetano é bem poesia. Eu tenho a impressão de que eles estão meio distantes. E se eles fizessem um conjunto? …

Este revival de Mutantes certamente levará a PolyGram a buscar gravações inéditas do grupo. Existe um disco inédito, gravado em Paris. Existem sobras dos discos nacionais etc. Você aprovaria o lançamento deste tipo de material ou você gostaria que a coisa ficasse do jeito que está, para manter o mito?
Eu já escutei a fita do Olympia na casa do cara que inventou o phaser, né? Não passa de uma coisa que arremeda os discos. Muito antes disso acontecer, existia um trabalho que quando eu ouvi eu quase chorei. É um LP que os Mutantes gravaram em Paris e que nunca ninguém lançou. Este não é o ao vivo. O do Olympia foi gravado, tudo bem. Mas, independente disso, o tal do Karl Holmes nos levou para o estúdio e disse: “Vamos pro estúdio, que eu gravo o que vocês quiserem!” Nós fizemos e aquilo virou um LP, do qual nós temos a fita. Seria interessante lançá-lo.

Mas o que estavam querendo lançar era o show, né?
Não, era o de estúdio mesmo. Aliás, nós é que queríamos. Quem teria que querer era a gravadora.

Vocês três estariam a fim de vê-lo lançado?
Eu sim, pelo menos. Não sei se os outros têm, pois não mantenho contato.

São versões em inglês?
São músicas em cinco línguas: espanhol, francês, português e inglês. A Virgínia também está lá. São músicas de vários discos, um pouquinho de cada coisa.

E quanto ao tape?
Nós temos uma cópia da master. O Liminha ouviu e disse que a qualidade está impecável.

A quem pertencem os direitos?
À Rainha da Holanda é que é a dona. Antigamente, a gente brincava com isso… porque a gente não sabia pra onde ia o dinheiro da Polydor. Eu adoraria ver este disco lançado. Aliás, uma das razões pelas quais eu ainda não “ataquei” o livro dos Mutantes profundamente é que eu pensaria: “Puxa vida, eles ainda nem ouviram o melhor trabalho da gente!”

Mas o Callado fala do disco, em seu livro.
É, eu sei… Foi ele quem descobriu a fita. Nós nem sabíamos com quem estava a fita. Quando ele a achou, ficou louco para lançá-la junto com o livro. Mas aí a PolyGram embarreirou direto. Estes lançamentos em conjunto atrasam tanto…

O quê você achou do relançamento da discografia dos Mutantes em CD, em 1992, quando saíram também os dois primeiros da Rita Lee?
Eu acho que a distribuição foi um pouco falha. Todo mundo fala que foi difícil de achar. Uma loja de Curitiba acaba de comprar mil cópias de cada um dos cinco primeiros diretamente da PolyGram. Já deve ter acabado.

Além dos discos que você fez nos anos 70, existe algum que você tenha feito e nunca tenha sido lançado?
Não que eu lembre. Só um show no Tuca, em São Paulo. Ficou uma gravação bonita, neste show eu toquei umas músicas que eu nem gravei. Estão prontas e estão só ali. Neste trabalho de relançamentos, seria bom lançá-lo.

Tem tanta coisa boa para sair…
Pois é… É neste sentido que às vezes percebo porque os Rolling Stones fundaram uma gravadora! Eles gravam, prensam e esquecem…

O quê você voltou da volta dos Beatles, se é que aquilo é volta, sem o John Lennon?
Eu acho que é exatamente igual ao Led Zeppelin sem o John Bonham. Plant & Page não são a mesma coisa. Pra mim, falta John Paul Jones e todo aquele pessoal. Uma coisa é certa: ressuscitar John Lennon seria impossível! (risos) No nosso caso, eu acho que lançando este material de Paris, a coisa seria muito interessante reviver os Mutantes.

Fale da regravação de Balada do Louco.
A produção foi feita pelo Guto Graça Mello, nós gravamos em seu estúdio aqui no Rio. Mixamos no Mosh, em São Paulo, com uma linha de guitarra bem diferente da que está na gravação original dos Mutantes. Gravamos num só dia, levei o dia inteiro. Não houve pressão, botei a voz na casa do Guto. Eu vim para o Rio tranquilão, sem stress algum de horário de estúdio. Passei o dia inteiro no estúdio, para fazer como eu queria. Ficou legal. Meu sonho hollywoodiano desde os Mutantes era o de ficar num hotel de cinco estrelas, com motorista na porta! (risos) Realizei, ficando no Hotel Sheraton e com carro de ar condicionado! Era isso que eu pensava na época dos Mutantes, naqueles hotéis fuleiros: “Um dia eu ainda vou ficar num hotel cinco estrelas! Vou ter um motorista para me levar de um lado pro outro, com aquele marzão ali na minha frente!” (risos) O clima foi esse.

Depois de tantos acontecimentos em sua vida, você hoje se considera um homem realizado?
Sim, ainda que eu não possa falar em termos totais. Nada é tão duro quanto elástico. Digamos que eu me sentirei bem melhor quando fizer o show esferofônico. Aí eu estarei mais completo, de acordo com o meu ideal. Eu nunca mais quero pensar em possuir um contrabaixo. O que eu tenho já é suficiente. Podem me dar Rickenbaker, Fender etc, que eu não quero. Eu tenho um Gibson, né? Eu tenho teclados suficientes, uma bateria que me é suficiente. Eu vou levando isso adiante, até atingir o som total. Falta somente uma guitarra, pois eu tenho uma Gibson que não é totalmente boa. É uma Epiphone feita na Coréia. A Gibson é mais alta, a Epiphone é apenas uma cópia. Eu tenho todos estes fatores que me deixam hesitante. Eu quero conseguir um total, mas não vai demorar. Ouso dizer que busco um som que ninguém jamais fez. Em Nova Iorque, uma vez eu ouvi o som quadrafônico – surround, né? Mas eu penso num som de seis canais, no qual existem os quatro e mais seis, um em cima e outro em baixo. Até transformar isso em disco, vai demorar. Não sei se vai ser possível…

Nestas suas andanças, o assédio de fãs dos Mutantes te incomoda?
Absolutamente. Eu acho legal. Quando eu tinha 16 anos, eu criava estereótipos em cima de ídolos como James Dean e músicos perfeitos. Eu me sinto assim, às vezes. Volta e meia, pinta alguém lá no sítio. Uma vez eu estava em casa e chegou um motorista de táxi, para pedir autógrafo. Fiquei abismado. Até no sinal de trânsito…

Alguém provavelmente já te disse que você é genial. Como é que você encara isso?
Eu vou te contar uma coisa, que deve ser uma das maiores que eu guardo na memória. Vai ser difícil de explicar, mas prepare-se. Uma vez a irmã da Rita Lee, a Virginia Lee Jones, chegou pra mim e disse: “Arnaldo, você acha que era a razão dos Mutantes?” Eu falei que sim, que era verdade. Hoje eu estava dando autógrafos e um menino falou: “Arnaldo, hoje é o dia mais importante da minha vida… porque eu me encontrei com você!” (risos)

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