Entrevistas

Caetano Veloso (2)

Há exatos dez anos, em meados de 1995, Caetano Veloso gravou no estúdio da PolyGram um raro depoimento promocional acerca da importância da Jovem Guarda. A seguir a íntegra:

Qual foi a importância da Jovem Guarda para a MPB naquela época?
A Jovem Guarda foi muito importante… porque era uma música singela e feita por gente cheia de vitalidade. Eu me lembro que a Bethania falou comigo assim: “A música popular brasileira tá muito defensiva, muito sem energia, você precisa assistir ao programa do Roberto Carlos!” Eu passei a ligar a TV, seguindo esse conselho da Bethania, pra ver o programa Jovem Guarda, e constatei que ela tinha toda razão. Aquilo era uma injeção de energia e, por outro lado, trouxe também para o panorama da música brasileira uma convivência com o folclore urbano internacional, que naquela época se chamava de iê iê iê, mas que era o neo-rock’n’roll. Ao mesmo tempo, ela terminou mais ligada a uma modernização efetiva da música brasileira do que muitos autores sofisticados, que defendiam as tradições nacionais e o respeito à Bossa Nova etc, conseguiam. Quer dizer, o pessoal da Jovem Guarda de uma certa forma estava mais próxima de João Gilberto do que os bossanovistas da segunda fase. Num determinado momento, isso pareceu envolvendo.

Quais os elementos musicais que a Tropicália extraiu da Jovem Guarda?
Justamente, a Tropicália nasceu – dentre outras coisas – desse conselho que eu ouvi da Bethania. Da visão atenta que eu passei a ter do Roberto Carlos e do programa Jovem Guarda, do Erasmo, da Wanderléa e do jeito como o programa era feito, com seu repertório e seu clima de descompromisso intelectual e ao mesmo tempo de energia criativa. Tinha muito mais energia criativa e muito menos pretensão, do que no ambiente em que nós mesmos circulávamos. E isso foi revitalizador e foi um dos propulsores da Tropicália.

Qual a relação e qual a diferença entre a Tropicália e a Jovem Guarda?
Bem, a Tropicália era uma coisa de natureza diferente da Jovem Guarda. Pode-se dizer que a Jovem Guarda foi um movimento espontâneo da criação e do mercado de música popular no Brasil, enquanto que a Tropicália foi um movimento de intervenção crítica que usou inclusive a idéia e as informações da Jovem Guarda como arma, para transmitir suas observações. (…) A Tropicália desejava fazer uma intervenção crítica em todo o panorama da música brasileira e usou muitos elementos da Jovem Guarda como arma pra se manifestar. Por outro lado, a Tropicália quis também quebrar também essa distinção entre MPB e Jovem Guarda – o que de uma certa forma até conseguiu, né?

A Jovem Guarda foi o primeiro movimento nacional a utilizar guitarras elétricas. Como você encarou na época a reação de diversos artistas brasileiros a esta inovação?
A guitarra elétrica naquela altura era considerada um símbolo, né? Mas, na verdade, os bossanovistas usaram guitarra elétrica cedo e até antes. Roberto Menescal tocava guitarra elétrica, mas era uma guitarra jazzística. A questão da Jovem Guarda é que usava não só a guitarra, mas outros elementos do rock’n’roll. É aquilo que chamo de neo-rock’n’roll inglês, que é o rock’n’roll dos anos 60 e não o americano de Elvis Presley, Chuck Berry e Little Richard dos anos 50. É o rock’n’roll inglês, com muita presença da guitarra elétrica – que por isso virou um símbolo. Muitos artistas da Jovem Guarda usavam esses conjuntos típicos de iê iê iê internacional, com guitarra elétrica, e ela virou uma espécie de demônio – que os amantes da tradição nacional popular temiam, como se fosse um negócio que poderia destruir nossa cultura. Roberto Carlos e o próprio Jorge Ben são compositores que saíram diretamente da Bossa Nova, em grande parte. Roberto era um amante do rock, com aquela amizade com Tim Maia e Erasmo, e o próprio Erasmo se manteve mais roqueiro até hoje. Ele tem uma integridade de que o Roberto deveria invejar, no tocante ao rock’n’roll, porque ele incorpora aquela pessoa do rock – enquanto o Roberto, que é um cantor mais eclético e que terminou sendo um grande cantor de baladas predominantemente românticas, se distanciou da figura do roqueiro. Mas, antes disso, o Roberto já era um cantor bossanovístico, o que foi muito importante pra originalidade da Jovem Guarda. Isso fazia com que ele estivesse, de uma certa forma, mais próximo de João do que Elis ou Vandré, entendeu?

O “rei” da Jovem Guarda fez uma música pra você no exílio. De que maneira você recebeu esta homenagem naquele momento?
Foi muito emocionante. Num show que eu fiz não faz muito tempo, eu cantava essa canção que Roberto fez pra mim quando nós estávamos exilados – e que é “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos”. Ainda agora, cantando a música de novo, eu ficava profundamente emocionado e muitas vezes na excursão eu não conseguia me conter e chorava quando eu pensava que aquilo aconteceu. Quando o Roberto é chamado de “rei”, não é por acaso; é porque ele representa de fato a palavra profunda do Brasil. Ele escreveu e gravou pra mim em seu disco uma canção enquanto eu estava exilado, numa época em que o Brasil “oficial” repudiava. Porque eu fui expulso do Brasil, pelas autoridades militares que comandavam o país então. Fui posto num avião e fui expulso do Brasil. Eu não me auto-exilei, como às vezes leio no jornal; eu fui expulso, fui convidado a sair. E o Roberto Carlos, que é como se fosse a voz profunda da alma brasileira, fazer uma canção terna de carinho para comigo, saudando uma possível volta minha, foi uma coisa que provocou uma emoção muito grande e que provoca ainda hoje.

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