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Caetano Veloso fala ao International Magazine

Em 12 de março de 1999, Caetano Veloso recebeu Marcelo Fróes e Marcos Petrillo em seu escritório no Leblon, zona sul do Rio, para uma entrevista exclusiva para o “International Magazine”. Ele falou de cinema brasileiro, trilhas sonoras, livros e, claro de rock’n’roll, iê iê iê e Jovem Guarda.

Gostaria de ter uma noção de como a Beatlemania e a Jovem Guarda te influenciaram.
Tudo! Sem dúvida, as duas coisas mexeram muito conosco. O Calhambeque e Quero Que Vá Tudo Pro Inferno, canções deste tipo e as interpretações do Roberto, as formações sonoras e as atitudes. Tudo aquilo nos impressionou e nos interessou muito. É evidente que a coisa dos Beatles era bem mais profunda, do ponto de vista da intervenção na alma da canção popular, porque tinha todo aquele lado experimentalista e mais aventureiro. Tinha mesmo uma criação musical mais arrojada. Tinha o próprio George Martin, com as contribuições da música atonal, serial e concreta, as influências de Stockhausen e todas aquelas coisas – montagens, gravações, inserções de falas, vozes e ruídos. Enfim, eles tinham todo um procedimento vanguardista ligado a uma noção de intervenção, da qual eles eram os maiores representantes. Aquilo tudo nos tocou muito. Eu diria que as duas coisas, ainda que com intensidades um pouco diferentes, tiveram uma importância muito grande para nós.

– Você acha que com seu livro “Ver­dade Tropical” você esclareceu toda a sua vida? Sua biografia até aquele momento está fechada?
Não, não. Não, de forma nenhuma. Eu suponho que jamais farei isso que você está dizendo: “fechar uma biografia”, tipo faz uma autobiografia o mais exaustiva possí­vel.

Nos últimos 5 ou 6 anos nós tivemos no mercado dois livros sobre você e sobre sua obra – “Esse Cara” e “Por quê não?”. O que você achou desses trabalhos?
Ué, eu fiquei agradecido e achei inte­ressantes, agora o livro que eu escrevi é um livro mais pra tocar nos assuntos e manter vivos os problemas que foram suscitados pelo Tropicalismo. Mas eu só fiz isso por­que esse editor americano me convenceu, entendeu? Aí eu vi que servia pra isso tam­bém, me animei pra repensar as coisas e trazer à tona, repondo as coisas no lugar. Então é isso.

Você nunca tinha detalhado tanto o episódio de sua prisão com Gil, né?
Nunca, em lugar nenhum… (neste momento, Caetano vira o copo de refrige­rante sobre seu colo e a entrevista é inter­rompida) Que coisa incrível, menino! (…) Bem, aquele capítulo do livro é quase um livro que pode até ser publicado separada­mente.

Tava tudo fresquinho, na ponta da língua?
Cara, saiu fácil em geral. Agora, acon­tece que eu me baseei 100% na memória. Eu escrevi sozinho, não fiz nenhuma pes­quisa e nem liguei pro Gil pra perguntar: “Gil, foi assim mesmo?” Nada. Agora, por­que é que eu fiz isso eu não sei. Não foi uma decisão, é porque eu tava escrevendo pensando que aquilo eram anotações. Eu não tava escrevendo como se fosse um tex­to definitivo, entendeu? E, por fim, eu achei que não ia usar aquilo como anotações para fazer uma outra coisa. Eu não ia ter saco, ia ficar assim mesmo. Como tava saindo, eu ia deixando. Ficava pensando “depois eu pergunto às pessoas”.

O detalhe de quando você vai ser solto, que você já tem na cabeça a convic­ção de que será solto naquele dia. Aquilo foi uma experiência mística?
Eu não sei dizer. Eu acho muito estra­nho, não é uma coisa muito fácil pra minha mente. Mas também não é fácil porque não é também uma coisa 100% incompreensí­vel e inexplicável. Você não faz perguntas e não faz adivinhações em relação ao futu­ro sem alguma base, entendeu? Você arris­ca dentro de uma margem de possibilida­des. As vezes você tem informações que já estão “ali no computador”, né? Por exem­plo, você tá com tanta angústia naquela si­tuação que fica com essas necessidades de premonição elevadas ao máximo, porque você tá numa ansiedade muito grande em relação ao futuro. Então você quer potencializar sua capacidade de adivinhar e isso se torna possível. Veja bem, você vai abrindo uma brecha pra entender o que é que vai acontecer no futuro. E você não vai perguntar aos sinais que você elege o que já sabe que definitivamente não vai acontecer. Você já começa a perguntar por um cami­nho plausível, e depois você vai intuindo uma série de coisas. Como, par exemplo, à altura em que nós fomos soltos, tinha justa­mente passado o Carnaval. Antes do Car­naval tinha havido um aumento da tensão porque eles entraram em prontidão, por cau­sa de ser vésperas de Carnaval. Isso tam­bém repercutia em mim, naturalmente. De­pois do Carnaval, a gente já tava lá há qua­se dois meses e o Carnaval tinha passado. Essas coisas todas você não pensa, mas você vai vendo e vai dando as possibilidades. Você vai deduzindo e vai entrando, entran­do e entrando e vai vendo as possibilidades todas. E vai perguntando qual a música que está tocando no rádio, se aparece barata no chão e se o cara assobia uma música. Você vai indo, vai indo e vai indo e chega perto do que de fato acontece. Por um lado, sur­preendentemente eu cheguei a uma preci­são assustadora.

Foi única esta experiência?
Com esta precisão, eu nunca tive nada igual. A precisão de ser durante o almoço, isso daí é realmente é muito. Porém, ao mesmo tempo, o que aconteceu logo a se­guir não é o essencial da minha pergunta ­que é se eu iria ser liberado naquela hora. Eu não fui liberado, acontece que chegou com exatidão perfeita – no momento em que eu previ a notícia. Porém, não houve verda­deira liberação. Eu recebi aquilo assustado, por ter adivinhado com tanta precisão, mas feliz porque “bom, agora vão me deixar sair!” Mas não, não foi nada assim. Pega­ram eu e Gil, botaram dentro de um camburão e levaram pra Polícia Federal, pra botar a gente num avião e levar a gente pra Salvador. O avião não conseguiu levantar, eles trouxeram a gente de volta pra Polícia Federal. A gente tava com algema, foi hor­rível. Botaram a gente dentro da Polícia Federal de novo, pra dormir mais uma noi­te, e no outro dia levaram a gente pro avião da FAB. Levaram a gente pra Salvador, en­tregaram na Força Aérea e eles disseram que não tinham ordem de soltura. Prende­ram a gente de novo, ficamos mais um dia presos em Salvador. Ainda por cima, final­mente quando saímos de lá, levaram a gen­te pra um coronel – que nos recebeu e nos disse que a gente tinha que se apresentar todas as noites e que não podia sair de Sal­vador, não podia dar entrevistas, não podia cantar e não podia trabalhar. Então, quer dizer, não aconteceu o essencial da minha pergunta. Na verdade, aquilo não deu certo não! Agora, aquele horariozinho deu pre­cisamente… Então eu fico impressionado e sou um pouco cético. Eu fiquei impressio­nado.

É uma história que só você pode con­tar. E quanto ao livro do Tropicalismo escrito pelo Carlos Callado, você acha que conta bem a história pública do movimen­to?
É muito bom, eu acho que a história tá muito bem contada. Vista de fora, com ob­jetividade, a história pública está muito bem contada e eu acho que é um livro que complementa muito bem o meu, entendeu? E achei o livro muito bom… e que corrige algumas coisas que estão no meu livro, de uma certa forma, e informa coisas que eu não contei… porque dá um painel geral. E eu adorei as fotografias que ele encontrou e selecionou pra botar. São incríveis.

E quanto aos outros dois livros, você coloborou de alguma maneira?
Nada.

Mas não chegam ser livros à revelia, né?
Não, as pessoas todas falaram comigo e são muito gentis. O rapaz çle Pernambuco (Héber Fonseca, autor de “Esse Cara”) mor­reu, mas com ele eu tive mais contato. En­graçado, ele me pediu mais e ele me procu­rou muito. E eu dei muitas informações, corrigindo algumas vezes. Mas tinha tan­tos erros no livro dele que eu corrigi, mas eu disse pra ele: “Olha, é tanta coisa, você tem que trabalhar, eu não posso fazer o li­vro pra você, você tem que trabalhar e refa­zer isso, pega essas coisas que eu corrigi e refaz isso… senão eu não posso nem permi­tir que o livro saia, porque tá muito erra­do”. Aí ele refez e… ficou meio assim, cho­rou um dia e ficou meio aborrecido. Falou com meu irmão, quando ele estava excursionando pelo Nordeste. Eu estive com ele em Fortaleza e no Recife; quer dizer, eu gostava dele. O outro livro é um trabalho mais acadêmico, mais intelectual, o que é muito bacana. Foi feito por um casal aqui do Rio, o Lucchesi e a Dieguez.

Caetano, fala um pouco do rock’n’roll. Em seu livro você o cita como influência, mas não como algo tão signi­ficativo quanto a Bossa Nova.
Engraçado, eu não acho. Eu acho que foi muito significativo e na verdade o Tropicalismo foi como se fosse uma adesão roqueira da música popular brasileira. Eu canso de dizer que a gente misturou música de puteiro brasileira com tango argentino, neo-rock’n’roll inglês e música tradicional e música folclórica brasileira. Mas aconte­ce que o rock não é uma coisa entre outros, porque a Bossa Nova é o nosso chão e é de onde nós viemos e onde vivíamos. Mas tudo o que não interessou à Bossa Nova, nos in­teressou, e o rock brasileiro de Roberto Carlos e da Jovem Gúarda, além dos Beatles, Jimi Hendrix e Rolling Stones, es­sas coisas foram essenciais pra nós. Mas também James Brown e a coisa soul, todas essas coisas foram essenciais, mas o rock tem uma característica de estilo hegemônico. Quando você. entra com ele, sobretudo naquela altura, você não pode simplesmente usar só um pouquinho. Ele não é um estilo formalmente definido, nem no “Rock Around The Clock” as músicas são todas parecidas entre si. Nos filmes de Elvis tem baladas meio antiquadas e depois uns 12-bar blues um pouco mais rápidos. O rock propriamente não é nada, é uma mis­tura de algumas coisas com a chegada de um número grande de jovens na cena. Foi um negócio muito grande, uma geração muito grande de classe média com poder aquisitivo, americana, mas não só lá. Pe­gou todo o ocidente, inclusive os países oci­dentais do terceiro mundo. Isso se deve em parte ao crescimento econômico, pois veio toda uma geração de jovens que teve espa­ço pra se mover. O consumo precisa dos jo­vens e os jovens têm um lugar no consumo, então o rock veio a denominar o que resul­tar de tudo isso, embora não se definisse um estilo propriamente musical muito pre­ciso. Então, quando você – naquela altura ­se você adere ao rock, é diferente de usar tango ou mencionar cantigas do início do século. De uma certa forma, você estava botando tudo na perspectiva do rock. Você estava aderindo à perspectiva do rock; ou seja, à perspectiva da juventude naquela al­tura. Só que já era uma altura em que tava se passando um movimento dentro da his­tória do próprio rock – que é o que eu cha­mo de neo-rock’n’roll inglês, que foi uma coisa feita pelos Beatles e pelos Rolling Stones. Sobretudo pelos Beatles, porque eles deram ao rock um status que o rock não ti­nha antes. O rock era lixo, né? O rock era lixo, como muita gente pensa que o axé music é lixo hoje – ou o pagode ou o brega. Entendeu? Quer dizer, era uma época em que a gente ouvia Chet Baker e Miles Davis, então vinha Elvis Presley e Bill Haley. No Brasil, sinceramente, mal e porcamente. Se chegava, nunca chegou até mim gravações de Chuck Berry. Ninguém falava muito, era um nome remoto. Little Richard, um pouco mais, pois ele apareceu no filme “The Girl Can’t Help It”. Mas não era Elvis nem Bill Haley.

Mas o rock teve o poder de pegar músicas antigas e apresentá-las pra ju­ventude sob nova roupagem, né? Da mes­ma forma, eu acho que você particular­mente tem o mesmo poder, quando – de vez em quando – pesca alguma pérola e mostra que é um verdadeiro clássico da música brasileira.
Na verdade, o rock naquela época ti­nha o poder de vulgarizar tudo o que toca­va. Quer dizer, você ouvia Elvis Presley can­tando música napolitana em inglês – com aquele ritmo meio assim; ou então, Roberto Carlos cantando Coimbra mais tarde. Era uma coisa de vulgarização – transformar em música comercial, popular e considerada de baixo nível coisas que antes eram até mais consideradas. Ou então, os Platters cantan­do Smoke Gets Into Your Eyes – aquilo era uma canção americana bonita, cantada por cantores sérios e bacanas. De repente, vira aquele rock balada com a orquestra às ve­zes desafinada.

Eu acho que você não entendeu mi­nha pergunta. Vou refazê-la, talvez se encaixe melhor no papo. Você faz o cami­nho inverso, porque pesca pérolas mal arranjadas, mal interpretadas e mal gra­vadas, e mostra com sua elegância que elas podem ser verdadeiros clássicos de nossa música. Você não fez isso com So­nhos, do Peninha, e agora também com Sozinho?
Sonhos é uma obra-prima, né?

Mas foi você quem sacou isso, ela era um sucesso popular de rádio AM.
É, mas eu adoro a gravação do Peninha.

Você não tem consciência desse seu poder, de pegar uma pérola e transformá-la num clássico?
Bom, mas o João Gilberto fez isso muito melhor do que eu antes, né?

Sim, mas você está falando para as últimas gerações – para quem o João Gil­berto não fala, entendeu? Você está mos­trando isso!
A Bethânia já vinha fazendo isso an­tes de mim!

Mas Maria Bethânia é eminente­mente intérprete, sempre foi. No seu caso, você é cantor e compositor… e, de vez em quando, pega umas músicas e mostra. Isso é uma responsabilidade sua, além de um privilégio.
“Fina Estampa” é um disco todo com essa consciência, estou confirmando o que você está dizendo. Mas não adianta você pegar uma música brega e fingir que ela é chic, trabalhando em cima dela. Acontece que elas são canções que têm uma beleza muito grande e com as quais eu entrei num contato muito profundo, por razões muito especiais. Eu tenho o meu repertório inter­no de referências, então, quando eu trago a canção vem com tudo isso. E, como ela pas­sou por uma metabolização real dentro de mim, chega às pessoas de uma maneira con­vincente. Não adianta fazer deliberadamente, tem que acontecer com você e com a canção.

Quando você cantou O Calhambe­que no disco da Jovem Guarda, aquilo foi o quê?
Foi tudo… Foi porque ia ser feito um dis­co e eles me chamaram. Eu adoro a grava­ção do Roberto. Eu vou dizer, antes de eu gostar do Roberto em geral, quando a gente só gostava de Bossa Nova, eu já gostava da gravação do Roberto… porque tinha muito swing! Até eu me lembro de umas pessoas entendidas em Bossa Nova, gente mais ve­lha que nós e que conheciam o João Gilber­to pessoalmente, até eles gostavam do Roberto Carlos cantando O Calhambeque. Porque o Roberto tem muito swing, ele canta muito bem. Aquilo ali era um disco de ce­lebração comemorativa e me chamaram. Eu fui e gravei, gostava muito.

Você acha que, com todas aquelas pessoas do movimento ali presentes, isso tinha a ver? De repente muitas podem não ter entendido sua presença. “O que é que um tropicalista está fazendo num disco da Jovem Guarda?”
Ah cara, na época do Tropicalismo eu fui o único cara a subir naquele queijinho onde só subiam Roberto, Erasmo e Wanderléa. Tá? No final, ficava todo mun­do no palco e tinha um queijinho – um pra­ticável redondo – onde todo domingo só su­biam Wanderléa, Erasmo e Roberto. Eles fizeram questão de que eu subisse com eles mais de uma vez, depois que eu lancei Ale­gria Alegria e tudo aquilo foi feito do Tropicalismo. Eu conto no livro, o próprio Raul Seixas adorou o Tropicalismo e ficou muito estimulado a fazer tudo o que ele que­ria fazer depois que o Tropicalismo apare­ceu. Quando eu voltei de Londres, ele en­trou em contato comigo e nós ficamos ami­gos. Conversávamos muito e eu adorei aque­le primeiro disco dele. É espetacular, eu acho Ouro de Tolo uma das melhores can­ções já feitas no Brasil em todos os tempos. É espetacular. Agora, no período em que ele gostava de rock dos anos 50, isso é uma verdade, aquilo não era o meu mundo, nem de Gil e nem de Bethânia. A gente era da Bossa Nova, gostava de ouvir jazz, bossa nova e música boa. A gente achava rock um negócio muito precário, uma coisa muito quadrada e antiquada… e chata. Veio pra gente através do neo-rock’n’roll inglês, já foi uma coisa mais…

Mas “Sgt. Pepper” bateu mais em Gil do que em você, não?
Não, os Beatles em geral bateram muito mais no Gil do que em mim. Bateu em mim também, eu achei “Sgt. Pepper” maravilho­so, mas quando “Sgt Pepper” saiu a gente já estava gostando dos Beatles. O Gil ficou louco e entusiasmado com Strawberry Fields Forever, que foi antes de “Sgt. Pepper”. Mas a gente já gostava de “Revol­ver” e de “Rubber Soul”, já tinha coisas que a gente estava gostando. Mas eu ouvia mais Jovem Guarda, eu tava mais interessado em Roberto Carlos.

Mas deve ter rolado um movimento contrário à sua subida naquele queijinho da Jovem Guarda, não? O pessoal, que era seu companheiro na cena musical, deve ter ficado perguntando “qual é a sua?”
Ih, todo mundo era contra. O pessoal da música brasileira era contra. Agora, por exemplo, eu falo que gosto da axé music porque gosto e porque sou do carnaval da Bahia. Aliás, eu estou indo para um show de Daniela Mercury. Eu adoro, gosto, e co­legas meus – pessoas conhecidas – reclamam e a imprensa chia comigo porque eu gosto. Mas eu gosto, eu adoro, entendeu? Eu gos­to sob todos os aspectos, pra mim é impor­tante, entendeu? E agradável e importante pro Brasil. Eu gosto, não estou nessa do pessoal… mas não porque eu ache que a gente tenha que gostar de tudo, de qualquer jeito. Não é isso não, é porque eu sei que essas coisas representam movimentos den­tro da sociedade brasileira. E também sei o que é que é estimulante pra mim, individu­almente. Eu sou louco pelo carnaval da Bahia, pela música de carnaval, eu sempre gostei de carnaval. Sempre gostei de marchinha de carnaval do Rio de Janeiro e sempre gostei dos frevos pernambucanos, gosto das marchas de carnaval da Bahia que foram sendo feitos por trios elétricos desde que eu era menino e foram se desenvolven­do. Eu acho que esse desenvolvimento é uma coisa sempre importante. E como alguém que viu o desenvolvimento das escolas-de-­samba e que adora. Você vai dizer o que pro cara? “Eu acho chato! Eu não suporto mu­lata de sapato alto, cheia de pluma!” Então o cara vai djzer pra você: “E daí? Foda-se, entendeu? E a história da minha vida, eu acompanhei isso e eu vivi todos os carna­vais do Rio e estou interessado em ver onde é que vai dar tudo isso. Eu me preocupo e me interesso. Eu amo. Vá pra puta que pa­riu!” Eu digo a mesma coisa, aliás nos dois casos…

Essa sua opinião é importante, por­que as pessoas a buscam. Isso influencia no mercado…
Como eu não sou prisioneiro do mer­cado, nem do sucesso e nem do comercial, então eu não tenho problema com isso. Isso não é um problema que me aflija, porque eu não me prendo a isso. Então eu acredito no aspecto de tudo isso, que é livre disso… e acho também que a questão do mercado é em si mesma interessante. Eu acho que hou­ve umas mudanças no mercado brasileiro e que são de grande importância e que têm muito a ver com a presença de camadas da população brasileira que foram sempre proi­bidas de ser até reconhecidas como existen­tes. Eles estão aí e eu estou felicíssimo que elas estejam aí. Eu quero que venham mais, é um navio negreiro.

Mas elas sempre existiram, não atra­vés de músicas carnavalescas e alegres mas através de músicas bregas.
Peraí, música brega sempre teve, você não vai esconder, mas essas forças imensas de várias áreas do país nunca tinham che­gado. Nem a presença massiva do sertanejo do centro-sul no litoral, nem Claudinho & Buchecha.

Mas nós tivemos Odair José nos anos 70.
Mas Odair José não é Claudinho & Buchecha!

O mercado era pequeno nos anos 70, disco vendia pouco. Mas, guardadas as devidas proporções…
O que estou dizendo é que o cresci­mento do mercado significa uma revitalização de várias áreas de expressão de várias camadas da sociedade brasileira. Eu acho que o crescimento numérico do mercado é de grande importância também. Nos anos 50 houve muita presença de mui­ta música brega, a Bossa Nova foi contra isso e fez uma superação disso. Mas o João Gilberto nunca foi superficial quanto a isso, ele sempre trouxe o negócio todo. Ele sem­pre viu em profundidade a questão. Isso é que é a marca do gênio nele. O negócio dele foi o mais radical e ao mesmo tempo o me­nos estreito. Ele sempre viu o negócio todo com um espectro amplo. Então a Bossa Nova fez essa diferença, essa seleção mais rigorosa, e a gente precisa ter isso. A Bossa Nova pra mim é o que há de melhor à mú­sica popular no Brasil, e a gente precisa ter isso – parâmetros de norma, pessoas quali­ficadas que conduzam e que saibam criar níveis de resolução das questões estéticas da produção de música popular num nível alto. Agora, você não pode é entregar o que se consegue disso a poderes mediocrizantes, que querem exigir um rebanho de bom gos­to numa área estreita e que em geral está escondendo um elitismo muito pobre, que é um elitismo de país-província. Eu quero o contrário, eu quero mais ousadia… porque eu não quero ser província de porra nenhu­ma. Eu sou tudo, é isso que quero que cada brasileiro sinta. Eu sou eu e vou fazer até o fim um negócio meu. Vou inventar sem medo – di­ante do mundo, para o mundo e contra o mundo, sobre o mundo, com o mundo, di­retamente. É isso o que eu penso e, ao mes­mo tempo, justamente por isso, não, quero fazer do Brasil um negócio que eu vou esnobar e olhar pras manifestações que não estejam no meu nível de convivência inte­lectual como se não valessem nada. Eu acho chato.

Mas a Bossa Nova não restringe um pouco?
Pouco não, ela restringe muito… e tem que restringir. Tem coisas que tem que fa­zer isso, ninguém é mais radical do que João Gilberto… mas João Gilberto não é estreito. Muitos seguidores não são tão radicais mas são muito mais estreitos, entendeu? Ficam mais no resguardo do que na ousadia da invenção e terminam contribuindo mais para que fique um negócio, embora em ge­ral sejam todos muito bons e tragam e con­tribuam com um número de coisas impor­tantes. Mas a visão do panorama em geral pode servir a pretensões medíocres, de pi­sar a manifestação da vida no Brasil… e isso eu não quero.

Gilberto Gil outro dia disse que não se deve reclamar de nada disso que aí está, porque “a merda de hoje é o que se co­meu ontem e o que se come é sempre fer­tilizado pela bosta”. Você acha que isso que está acontecendo agora é decorrente de alguma outra coisa?
E, já é uma visão bem… Tudo isso é verdade, tá bom o que o Gil disse.

Esse fato de você estar aberto a tudo, aliado às suas manifestações públicas de apoio, isso faz com que muita gente in­terprete como uma maneira de apadri­nhar ou abençoar certas coisas. Há alguns meses atrás, nós fizemos uma entrevista com Lobão e ele colocou essa posição numa denúncia de que existiria na cena cultural brasileira um “coronelismo”.
O Lobão já vem falando, há muitos anos que ele fala e reclama. De diversas maneiras, ele já disse coisas agressivas con­tra mim. Mas eu gosto dele, eu não consigo sentir uma coisa.

Ele também diz gostar de você, só acha que deveria haver um debate sobre isso.
É, eu gostaria que ele fizesse mais dis­cos interessantes.

Ele está fazendo um disco de Bossa Nova…
É, que seja bom, né? Ele tem coisas tão bacanas, ele tem uma personalidade in­teressante. Então eu gosto dele, mas isso daí é bom. É bom também que alguém chie, mas o que é que eu posso fazer? Isso e nada pra mim é a mesma coisa, porque não adianta nada. Eu fiz uma porrada de músicas atra­vés dos anos, participei ativamente do mo­vimento do Tropicalismo, estou aqui e te­nho a minha visão e a minha posição. Ex­ponho tudo com a maior transparência e clareza e quem quiser que faça disso o que quiser e puder. Eu não posso mudar e nem vou mudar pra agradar às pessoas ou pra facilitar a vida de quem quer que seja. E isso, se eu apadrinho ou abençoo, tomem como quiser. Eu não sei, eu me interesso ­por exemplo pelo fato de que os músicos do centro-sul tenham chegado ao nível de profissionalismo que eles chegaram e que cantem com afinação e que as bandas to­quem muito bem e que o show seja muito bem acabado. Eu acho que isso é ganho pra nós, além do que as regiões do Brasil se intercomunicam – o que também é bom pra nós. Então é isso o que me interessa, que eu vou ver no carnaval a Daniela Mercury, a Ivete Sangalo ou o Netinho, e eles cantam 7 dias seguidos, 10 horas por dia, manten­do o nível profissional lá no pico de Las Vegas. Eles são estrelas nacionais… e in­ternacionais, em muitos casos. Eles fazem isso no carnaval num nível espetacular, en­tão eu gosto de ver isso. Eu gosto disso, ­quem quiser chiar que chie. Eu tô cagando, não tô nem aí. Eles não precisam de minha bênção e nem de porra nenhuma, eles an­dam com suas próprias pernas. Tem muitas coisas que eu falei – e que eu falo – e que as pessoas não dão a única importância.

A única coisa que eu falo como um conselho para os brasileiros, há anos e há décadas, é que parem no sinal vermelho. E eu não vejo, eu vejo poucas pessoas pensarem pelo me­nos em mim quando estão na frente de um sinal que está fechado. Eu acho que as pes­soas deveriam parar no sinal vermelho, a qualquer hora do dia ou da noite. É o único conselho que tenho pra dar a qualquer bra­sileiro. Agora, ouçam o que quiser. Vocês não são obrigados a ouvir axé music, nem música de parintins e nem Claudinho & Buchecha. Agora, o Lobão também pode falar. O que vou fazer? Eu gosto dele, eu não consigo antipatizar com ele. Eu acho ele interessante, mas acho também que é chato que muitos colegas dele estejam fa­zendo discos e ele mesas redondas pra dis­cutir. E ainda tem jornalista pra elogiar, porque “ele falando na mesa redonda foi bacana porque falou mal do colega”. Mas o colega dele tá fazendo disco bom e bem fei­to, então ele que vá fazer também. Isso éque importa, muito embora a discussão seja boa. Isso aí também é meio nada, também.

Com a virada do século e do milênio, você acha que a música brasileira e o ci­nema brasileiro podem mudar a visão do Brasil lá fora?
A música é mais estável e a música popular brasileira se estabeleceu mundial­mente com a Bossa Nova, de uma vez por todas. E nunca mais isso foi negado, por­que as gerações que vieram a seguir – ao contrário de negar – confirmam isso. Eu digo isso sem falsa modéstia, mas, sobretu­do por causa de Milton Nascimento, que é da minha geração e que veio depois da Bossa Nova. Ele é de uma geração que reconfirmou isso pros amantes da música popular sofisticada no mundo inteiro. E também a nossa coisa tropicalista atualmen­te está sendo entendida como uma coisa super sofisticada, pelos caras americanos mais modernos – tanto da imprensa, quanto os que fazem música. Então isso tudo é uma conquista, a música popular brasileira real­mente conquistou uma coisa estável. A Bos­sa Nova encontrou uma respeitabilidade que se manteve, porque nós estamos em 1999 e ela chegou lá em 1962. Olha cara, a grava­ção de The Girl From Ipanema com Stan Getz e João Gilberto vendeu mais que os Beatles. Sérgio Mendes ficou anos estoura­do, depois tivemos Eumir Deodato. Mas o João Gilberto, que é o mais radical de to­dos, estourou impressionantemente com Astrud cantando com ele e Tom Jobim to­cando piano, enquanto Stan Getz tocava saxofone. Aquilo estourou e nunca mais isso se desmentiu. Ao contrário, porque aquilo se manteve. A produção do Tom Jobim atra­vés dos anos só fez confirmar e o Frank Sinatra gravou tudo dele. Ella Fitzgerald também gravou, Sarah Vaughan gravou várias músicas. Os maiores cantores ame­ricanos gravaram e Chet Baker gravou Re­trato em Branco e Preto. Miles Davis gra­vou Bossa Nova, gravou Tom Jobim e Aos Pés da Cruz só porque o João Gilberto ti­nha tocado daquele jeito. E foi ficando e isso nunca mais se perdeu, porque passam-­se 10 anos e o que acontece? Milton Nasci­mento. Os caras falam: “Porra, é mais ain­da! O negócio lá é muito!” Tem muita gen­te boa que faz música no mundo – nos Esta­dos Unidos, na Europa, no Japão e em todo lugar – e que fala que “a música brasileira é um ponto de referência de peso”. Agora, o cinema oscila mais e também tem que en­frentar um tipo de mercado mais complica­do. Mas também, agora com essa volta, está com uma reafirmação muito boa… diferen­te do período do Cinema Novo – mais inter­nacional, mais podendo entrar nos Estados Unidos, mais comercial e mais normal, pois o Cinema Novo foi mais instigação inven­tiva e experimental. Mas é, pode ser.

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Jose Carlos Almeida

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