Há dez anos, quando Raul Seixas teria completado 50 anos, o International Magazine de junho de 1995 dedicava sua capa ao maluco beleza e publicava o seguinte artigo de Marcelo Fróes sobre os anos obscuros de Raulzito Seixas, entre 1967 e 1972. Pouco se sabe acerca do que Jesus Cristo fez entre os 12 e os 33 anos, mas agora você certamente saberá o que fez Raul Seixas antes da fama.
Marcelo Fróes
É incrível que, depois de tantos ensaios e tantos livros sobre a vida e a obra de Raul Seixas, venhamos a descobrir que tão pouco se escreveu sobre um período tão importante na vida do primeiro grande roqueiro baiano. No mês em que Raul completaria 50 anos de vida, ao invés de fazermos aquele clássico apanhado geral sobre sua carreira, nos prenderemos ao período compreendido entre 1967 e 1972, quando Raul Seixas não tinha aquela barba e estava longe de ser o maluco beleza que todo mundo conheceu.
Já é mais do que sabido que quem trouxe Raulzito Seixas para o Rio de Janeiro foi Jerry Adriani, quando este o conheceu durante uma de suas muitas excursões pelo interior do país. Naqueles idos de 1967, Raulzito & Os Panteras ralavam bastante na Bahia. Acompanhado por Mariano, Carlos Eládio e Carleba, Raulzito conseguiu gravar um álbum pela Odeon em setembro de 1967. Apesar de recheado com uma regravação de Lucy In The Sky With Diamonds, “Raulzito e Os Panteras” foi um fiasco tão grande, que os caras voltaram para a Bahia em 1968.
Apesar dos pesares, Raul sempre guardou um grande carinho por aquele primeiro trabalho. Em depoimento inédito cedido ao INTERNATIONAL MAGAZINE por Kika Seixas, Raul diz: “É um disco tão bonito… Eu tinha a voz de tenorino! Na Bahia daquela época, eram poucos os grupos de rock. Tinha o Gentlemen e tinha Os Minos, no qual tocava o Pepeu (Gomes). Até dei uns cascudos nele, por roubar meus acordes… Mas o pessoal que vinha do Rio ouvia falar de um grupo baiano que mais entendia de rock and roll. Assim, acompanhamos todo mundo da Jovem Guarda: Ed Wilson, Roberto Carlos, Wanderléa, Jerry Adriani, WanderleyCardoso etc. Mas eu gostava era do Jet Black’s!”
Apostando no talento do amigo, Jerry Adriani convenceu o então presidente da CBS, Evandro Ribeiro, a dar a Raulzito um emprego de produtor e foi buscá-lo novamente. Não deu outra. Numa época em que o produtor era pouco mais que um funcionário da gravadora, não recebendo créditos na capa e nem no rótulo do disco, somente o diretor artístico aparecia. Raulzito trabalhou anonimamente por um bom tempo. Nomes como os de Renato Barros, Walter D’Avilla Filho e Jairo Pires pintavam nos selos, enquanto o de Raulzito ficava na sombra.
Tão logo entrou para a CBS, Raulzito fez grandes amigos. De cara, ainda em 1968, a dupla Os Jovens e a banda The Sunshines apostaram em suas letras. Para o lado B de seu compacto Quero Gritar, Os Jovens gravaram Se Você Me Prometer, enquanto The Sunshines atacaram de Um Novo Amor Há De Vir, versão de Raulzito para How’d We Ever Get This Way.
“O grande amigo de Raulzito naquela época sempre foi o Leno”, confirma Arlindo Coutinho, relações públicas da CBS (hoje Sony Music) há mais de 30 anos. “Raulzito sempre esteve 20 anos adiante de seu tempo e Leno o compreendia; na verdade, sempre houve uma grande admiração mútua”. Em seu compacto duplo Papel Picado, lançado em 1969, Leno registrou Um Minuto Mais, versão de Raulzito para I Will (nada a ver com a canção de Paul McCartney).
Jerry Adriani de cara convocou Raulzito para ser o produtor de seus discos. No álbum de 1969, aproveitou para gravar uma de suas músicas, Tudo Que É Bom Dura Pouco. Naquela mesma época, outros ídolos da Jovem Guarda também apadrinharam Raulzito. Ed Wilson gravou Se Ela Não Serve Pra Você Também Não Serve Pra Mim, enquanto Renato e seus Blue Caps ficaram com Obrigado Pela Atenção e Leno, já em 1970, com Sha-La-La (Quanto Eu Lhe Adoro).
Aliás, registre-se aqui que o ano de 1970 marcou o início de uma fase muito ativa na carreira de Raulzito, ainda que como produtor da CBS. Primeiramente, porque os discos começaram a trazer seu nome nos créditos. E, em segundo lugar, porque cada vez mais suas músicas passaram a ser gravadas pelos artistas do cast da gravadora. Assim, Raulzito iniciou uma parceria com Leno, escrevendo Se Eu Estou Feliz Porque Estou Chorando para Renato e seus Blue Caps. Passou o ano produzindo discos para Tony & Frankye, Osvaldo Nunes, Jerry Adriani, Edy Star e Diana, além de escrever uma quantidade enorme de músicas para os colegas da gravadora: Se Pensamento Falasse e O Táxi Está Esperando (para Jerry); Se Você Soubesse (para Daniel); Ainda É Quente Bicho (para Matilda); Volta E Vamos Recordar e Último da Lista (para Lafayette); Deixe Ele Falar Sozinho e Desta Vez Eu Voltei Pra Ficar (para Luiz Carlos Magno); e Tudo Acabado (para Odair José). Isto tudo só em 1970, além das versões O Mundo É Triste Sem Você (de Le Monde Est Gris) e Não Quero Lhe Perder (de I Don ‘t Wanna Lose Vou Baby), ambas para Altamir César; e as parcerias Play Boy (com Pedro Paulo), gravada por Renato e seus Blue Caps, e Não Consigo Te Esquecer (com Leno e Rossini Pinto), gravada por Sérgio & CobeI, dupla formada por irmãos de Márcio Greyck.
Vale também registrar que o álbum de 1970 de Renato e seus Blue Caps trouxe em sua contra-capa “A Lei da Insequapibilidade”, um texto muito louco escrito anonimamente por Raulzito. Relançado recentemente em CD pela Sony Music, o álbum veio sem o texto em seu encarte. Portanto o transcreveremos para que você veja a genialidade pré-Paulo Coelho de Raulzito:
A LEI DA INSEQUAPIBILIDADE
Muita gente ainda hoje se pergunta se é insequapível ou não. A resposta é clilófricamente simples: A lei da insequapibilidade pode ser explicada baseando-se no método do “Diafragma de Aquiles”. Tomando-se por base os crepúsculos de diferentes dimensões, alia-se ao pentagrama diluvial pela quinta lei de Newton, lei esta referente à gravitação das histórias em quadrinhos em torno dos velocípedes. Daí onde a teoria vigente entra em desacordo com a referida insequapibilidade.
Insequapíveis? Sim, porém insequapóveis em certos aspectos, quando examinados pelo oblíquo lado da patinete.
Fórmula
(Segundo ou terceiro Godofredo IV do Irã)
I – Retumblências transpurcar com azôto de carbono. 11 – 3% de Rataclenas quentes.
III – 6 litros de pisceleto à gampôla na manteiga.
Fórmula algébrica da insequapibilidade: X3 + nada = ou parecido
Raulzito e os Panteras acompanham Roberto Carlos
O ano de 1970 foi encerrado com o início da gravação de “Vida & Obra de Johnny McCartney”, um álbum conceitual de Leno. Depois de ter acompanhado as mudanças sonoras que Woodstock e o final da década imprimiam à música pop, o mais jovem cantor e compositor original da Jovem Guarda resolveu fazer algo diferente e chamou Raulzito para ajudá-lo. Juntos, os dois escreveram várias faixas e reuniram um bom time de músicos para a gravação: Renato e seus Blue Caps, A Bolha, The Shakers, Golden Boys e Trio Ternura. Mas faixas como Sr. Imposto de Renda e Pobre do Rei foram censuradas e o projeto arquivado pela gravadora, o que levou Leno a pedir rescisão de contrato com a CBS. Naquele ano, Raulzito o acompanhou no Festival Internacional da Canção, com a censurada Sentado No Arco Íris. Recentemente redescobertas, as matrizes do lendário disco foram mixadas digitalmente e um CD histórico deverá sair dentro de pouco tempo. Lá estão as parcerias Johnny McCartney, Sentado No Arco Íris, Convite Para Ângela, Bis e Lady Baby.
Com os pés puxados de volta ao chão pela diretoria da gravadora, Raulzito continuou produzindo diversos artistas no correr de 1971, dentre os quais Trio Ternura, Sérgio Sampaio, Tony & Frankye, Jerry Adriani e Fein, além de ter composto as músicas Estou Voltando Pra Casa (com Pedro Paulo), Trifocal (para Tony & Frankye), Amei Você Um Pouco Demais (com Sérgio Sampaio, para José Roberto), Se Você Não Precisasse Você Não Pedia (também para José Roberto) e Ainda É Hora de Chorar (com Átila, para Renato e seus Blue Caps). Foi nesta época que Raulzito iniciou uma longa parceria com o ex-blue cap Mauro Motta (hoje produtor de Roberto Carlos), deixando para trás, somente em 1971, as seguintes composições: Darling (gravada por Renato), Amigo Contigo Eu Me Confesso (Túlio Monteiro), Ainda Queima A Esperança (Diana), Doce Doce Amor (Jerry), Vê Se Dá Um Jeito Nisso (Trio Ternura), Sheila (Renato) e Foi Você (Márcio Greyck). No final daquele ano, chegou às lojas um estranho LP intitulado “Sessão das Dez”, creditado a Raulzito Seixas, Sérgio Sampaio, Edy Star e Miriam Batucada. Fracasso comercial, ainda que com uma louca capa (foto tirada no Cine Odeon, na Cinelândia carioca), o álbum levou Raulzito a ouvir o que não queria da direção da CBS: seu espaço era de produtor e, quando muito, de compositor e de músico, mas jamais de cantor. Apesar de louco, este disco deverá chegar às lojas muito brevemente, via relançamento digital da Rock Company de São Paulo. É uma pena que não vá incluir Hully Gully, em versão gravada por Raul durante aquelas sessões e arquivada ad eternum.
Durante o ano de 1972, os artistas da CBS ainda receberam muitas composições de Raulzito e Mauro Motta: Deus Queira e Agora Eu Faço O Que Me Convém (José Roberto); Minha Amiga Stella (Pedro Paulo); Vim Dizer Que Ainda Te Amo (Raphael); Muito Obrigado Meu Bem (Paulo Gandhi); Um Drink Ou Dois (Leno & Lílian); Fatalidade (Diana); Tarde Demais (Jerry Adriani); A Qualquer Hora (Waldir Serrão); Baby Baby (Renato e seus Blue Caps); e Hoje Sonhei Com Você, Estou Completamente Apaixonada e Você Tem Que Aceitar (Diana). É óbvio que Raulzito também produziu um bocado, especialmente os discos de Paulo Gandhi, Jeny Adriani, Waldir Serrão e Diana, além de ter feito mais algumas versões e também as suas Deus É Quem Sabe e Objeto Voador (ambas para Leno & Lílian) e Jamais Estive Tão Segura de Mim Mesma (Núbia Lafayette).
Pra fechar sua carreira na CBS, pouco depois de escrever Let Me Sing Let Me Sing, inspirado no boicote que a direção da CBS fazia à sua arte, Raulzito participou do último Festival Internacional da Canção e garantiu um contrato com a Philips. Antes de partir, ele ainda fez Lágrimas Nos Olhos e Hoje Eu Resolvi Partir, ambas para José Roberto, e as últimas parcerias com Mauro Motta: Não Diga Nada e Problemas, gravadas por Monny.
É evidente que as composições de Raulzito durante seu período na CBS não foram gravadas exclusivamente por artistas da gravadora. Wanderley Cardoso gravou O Mundo Dá Muitas Voltas pela Copacabana e Alípio Martins Tenho Muito O Que Fazer pela RCA, ambos em 1971, enquanto José Ricardo gravou São Coisas da Vida pela Odeon e Lena Rios Eu Sou Eu, Nicuri É Q Diabo pela Philips, ambas em 1972.
A partir de então, uma vez aproximado de Paulo Coelho quando Leno lhe mostrou a revista “A Pomba”, Raul Seixas ganhou uma barbicha safada e, com os sucessos de Let Me Sing Let Me Sing e Ouro de Tolo, gravou um álbum histórico em 1973: “Krig Ha Bandolo!”, seguido de “Os 24 Maiores Sucessos da Era do Rock”. Criou a Sociedade Alternativa e teve de se “exilar” nos Estados Unidos até que, em 1974, estourou Brasil adentro com Gita e seu LP homônimo. Daí em diante, tivemos “Novo Aeon” (75), “Há Dez Mil Anos Atrás” (76), “O Dia Em Que A Terra Parou” (já pela WEA, em 1977), “Mata Virgem” (78), “Por Quem Os Sinos Dobram” (79), “Abre-Te Sésamo” (de volta à CBS, em 1980), “Nuit” (independente, 1981), “Raul Seixas Ao Vivo” (pela Eldorado, 1983), “Raul Seixas” (83), “Opus 666” (84), “Metrô Linha 743” (Som Livre, 1984), “Let Me Sing Let Me Sing” (85), “Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béim-Bum!” (Copacabana, 1987), “A Pedra do Gênesis” (88) e “A Panela do Diabo” (WEA, 1989). Um dos melhores livros sobre a vida e a obra de Raul Seixas é “Uma Antologia”, de Silvio Passos e Toninha Buda, lançado pela Editora Martin Claret há dois anos. Escrito por quem gosta e conhece tudo que diz respeito ao maior roqueiro nacional, o livro já vendeu um sem número de edições e merece estar na sua estante.
Publicado originalmente no International Magazine de junho de 1995
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