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Entrevista

Sérgio Dias



No dia 18 de março de 1999, mesmo dia em que recebeu Marcelo Fróes em sua casa em Araras (RJ) para a assinatura do contrato que permitiu o lançamento do CD "Tecnicolor" (dos Mutantes), o guitarrista Sérgio Dias deu uma longa entrevista exclusiva ao International Magazine.

Você está com um novo disco em português depois de muito anos.
É, eu não tenho feito nada pra cá, esta é a primeira vez que eu faço algu­ma coisa pra cá em uns 10 anos ou mais. Ainda não tenho gravadora e nem pensei em nada disso, eu só fiz o disco por enquanto. Eu o fiz em português e para o Brasil, falando pra brasileiros. Agora é que é a hora de começar a ver isso.

Como foi sua passagem pela Natasha, que foi a última gravadora a lançar um disco seu.
A coisa da Natasha foi meio... meio idiota (rindo), eu não sei mais o que di­zer. A Connie é gente finíssima, mas eu não entendo porque é que eles lan­çaram aquele disco. Eles não fizeram nada!

Foi iniciativa deles procurar o selo inglês e trazer o disco para o Brasil?
Olha, o que aconteceu foi dentro daquela história deles lançarem o "tri­buto" aos Mutantes. Teve um puta rolo com a Virgin, porque a Virgin tentou ti­rar o trabalho deles e aí foi uma bagun­ça desgraçada. No fim das contas, sei lá, eu acho que eles inventaram essa história mais pra me seduzir, para que eu os apoiasse no lançamento do disco e dessa coisa toda. Eu apoiaria de qual­quer maneira, porque afinal eles é que tiveram a idéia. Mas lançaram o disco e sei lá, eu também não tava muito li­gado com isso porque eu sabia que não ia ter muita pressão.

Não era disco pro Brasil?
Eu não sei, essa coisa de não ser disco pro Brasil é uma coisa relativa. Porque então Pink Floyd não é pro Bra­sil, AC/DC não é pro Brasil. Quer dizer, eu acho isso uma grande bullshit. Exis­te um grande preconceito com relação a artista brasileiro estar lançando uma coisa lá fora. Esqueça de mim, pense em Elmir Deodato. Por que é que não sai nenhum disco dele aqui? Ele tem 5 Grammys, malandro! Entende? Aqui no Brasil ele não tem nada! Por que? O trabalho dele é ruim? Esse "Quanta", do Gil, eu me lembro que os caras desce­ram o pau no disco do Gil. Falaram mal adoidado, porque não era bom e por­que não vendia. Olhaí, Grammy: se foderam! O problema das pessoas é que elas rodam lâmpada demais. E e sem­pre foi uma questão de uma luta de poder pra conseguir ter o domínio da arte sem praticá-Ia. Como é que agora alguém pode dizer que o disco do Gil não é bom? Agora, como é que ficam os caras que falaram mal do "Quanta"?

Falaram mal do "Quanta" duplo, mas o que ganhou o Grammy foi o álbum ao vivo simples.
Certo, mas é a mesma música, porra! Entende? O crítico tem que basi­camente criticar e dar algo em troca. Só dizer que é uma merda? Isso qual­quer idiota pode fazer, tem é que mos­trar a solução. "Não ouvi mas não gos­tei", típico do Zeca Jaaaer. E uma piada, né? Fica essa coisa meio murrinha, mas infelizmente é uma coisa do Brasil... e eu acho que o Brasil não sabe fazer negócio. O brasileiro não sabe ga­nhar dinheiro. Outra coisa que eu não entendo é o Ritchie. Eu não entendo e não consigo entender. Um cara cujo pri­meiro disco teve 5 músicas no primeiro lugar, e que chega ao segundo disco com tiragem de 20 mil cópias. Como é que pode um artista com 1 milhão de cópias ter apenas 20 mil cópias no disco seguinte?

Parece que rolou uma fofoca envolvendo Roberto Carlos e a gra­vadora fechou-lhe sole­nemente as portas.
É nesse ponto que eu digo que a gravadora não sabe ganhar dinhei­ro. Se um cara vendeu 1 milhão e cacetada de có­pias, e naquela época não era todo mundo que vendia 1 milhão de cópi­as, e os caras não que­rem ganhar de novo aquela grana por causa de uma fofoca, então eu acho de uma burrice ab­surda, entende? Ameri­cano não junta emoção com negócio, entende? E aqui o problema eu acho que seria justamente esse: os caras misturam muito o lado emocional deles com o lado de ne­gócio, ao invés de dizer: "Eu não gosto desse cara, eu acho esse cara chato pra caralho, mas a música dele é importan­te e eu acho que isso pode ser até bom pra gravadora em termos de vendas e de status". Eles não sabem dividir isso, entende? Isso é uma coisa que não é bem resolvida no Brasil. Imagina um Tim Maia versus Joe Cocker, os doís problemáticos. Joe Cocker vomitava no palco, Tim Maia não comparecia e es­sas coisas todas. Porra, Tim era fodaço e conseguia fazer as coisas graças a um esforço supremo.

Mas você sabe que não precisa muito pra se dar mal dentro de uma gravadora. Você não precisa nem brigar com a diretoria. Se um geren­te resolve engavetar o trabalho do seu disco, acabou...
Uma palavra que deveria ser bani­da do vocabulário nacional de business: "queimar" ou "estar queimado com". Isso é o pior erro de mercado que pode existir no mundo. Como? Comeu a mulher de não sei quem? É a coisa mais absurda do mundo! Dinheiro é dinheiro, pelo menos é isso que eu aprendi na Améri­ca... e eu acho que eles estão certos. Onde é que eles estão?

A coisa mais fácil no Brasil é você ,se queimar.
É... bem mais fácil, sem dúvidas. Eu já devo ter virado cinzas há muito tempo. Por exemplo, o que é que o Lobão fez? Como é que pode, né? Por que? O que o Lobão fez de errado, eu não sei...

Talvez fale demais. As pessoas às vezes ficam magoadas. Isso que você falou sobre sua passagem na Natasha, que foi uma coisa "idiota", isso pode bater mal e eles nunca mais quererem conversar contigo.
Hunrun, entendo.

Uma frase mal colocada, e que vai ser lida por todo mundo. O cara pode ficar com raiva e pensar: "Pô, como é que ele vai pra imprensa e diz que a experiência foi 'idiota'? Esse cara comigo não trabalha mais!"
É, mas eu já não trabalho mesmo!

Sim, mas o mercado fonográfico brasileiro é muito pequeno e os diri­gentes fazem rodízio!
Não, o mercado fonográfico é imen­so... mas o problema é que o poder fonográfico é um circulozinho muito pe­queno. É um rodízio, sem dúvida: é sempre Fevers, Golden Boys e Lee Jackson - aquelas bandas que a gente passava direto e nem ia ver o show, nunca. Porra, o Lee Jackson eram uns caras que tocavam no Círculo Militar em São Paulo. A gente não podia entrar lá de tênis, então eu não ia. Eu até queria ver, mas imagina se eu ia colocar sa­pato pra ver banda. Meu tênis era um statement, eu uso até hoje! Isso tudo é parte da infância brasileira, agora o que eu acho que é estranho nisso é o fato do Brasil não ser tão jovem assim. O Brasil tem a idade dos Estados Unidos, bicho. O problema é que as nossas raízes foram tão podadas, tão cortadas. OK que a gente tenha sido colonizados por portugueses, e não por ingleses ou irlandeses. E daí? Portugal também foi uma grande nação, fez uma porrada de coisas inteligentes. E como se a gente fosse completamente órfão de 1500 pra cá, enquanto nos Estados Unidos tem Thomas Jefferson etc. E muito comum nos Estados Unidos você perguntar a nacionalidade de uma pessoa nascida na América e el9- te dizer que é italiana ou espanhola. É típico, enquanto aqui você é brasileiro e não tem nem papo. Agora, fica meio perdido nessa coisa toda o que é que é ser brasileiro. Por exemplo, a falta de patriotismo do bra­sileiro: você não encontra uma bandei­ra brasileira na porta das casas. Nos Estados Unidos, você passa por qual­quer cidadezinha e vê uma bandeira no portal de cada casa. Aquilo tem um sig­nificado, né? E aqui é uma coisa que é muito difícil. Não tem luta, não tem mais revolução. Agora o real não deu certo. O povo só diz: "Eu não falei que não ia dar certo? Eu disse, eu disse!" E daí, o que é que o cara faz a respeito? Vai que a moeda americana desvalorize 37% em um mês. Vá ver o que é que acon­tece lá! O pau come mesmo, não pode. E taí o Fernando Henrique numa boa. Bacana, jóia, lindo. E aí o Pitta é con­denado, tá lá. Com licença, aquilo lá é o meu estado. Eu tenho uma honra de ser paulista, eu tenho um puta orgulho. de São Paulo, e vejo um cara desse lá - condenado mas dirigindo São Paulo. O que é isso, meu? Eu tenho vergonha, eu tenho vergonha de ver a falta de honra... até de nós, paulistas.

Voltando ao novo disco, você o bancou sozinho?
Não, eu fiz uma sociedade com o Carlos - um amigo meu de São Paulo. A gente está fazendo um selo e a idéia talvez seja a de conseguir uma distri­buição. A gente ainda não tem exata­mente uma idéia comercial do que a gente vai fazer, mas o selo chama-se Lotus Music. O Carlos é muito parecido comigo, em termos de ideais, trabalha com diversas coisas mas também é músico. Ele também compõe e toca vi­olão e guitarra, sendo portanto mais polivalente nesse nível. A gente resol­veu se juntar porque ele estava fazen­do um projeto e eu fui tocar nesse pro­jeto. A gente teve uma química muito boa, então é a primeira vez na minha vida que estou fazendo uma socieda­de. Esse disco está pronto e é extrema­mente rebelde, porque as letras falam umas coisas muito fortes para o Brasil. Eu não sei o que é que vai acontecer, se uma gravadora vai querer pegar ou se não vai querer pegar; se vai distri­buir ou se não vai distribuir, mas nin­guém vai para esse disco. É rock'n'roll, se ninguém pegar eu sei que as vendas da Internet subiram 60% e a gente está oficializando o selo pra poder ter cartão de crédito na nossa homepage. A gen­te vai vender esse disco, esse disco vai sair.

Este disco será o primeiro lançamento da Lotus ou você pode considerar lançá-la sozinho por uma gravadora, inde­pendente de levar a distribuição do selo junto.
Querido, uma coi­sa eu aprendi na vida: "never say never". Eu não sei, honestamente não sei. Tudo isso de­pende do que aconte­cer, eu não posso fechar as portas pra nada. Se­ria "toca", então se al­guém quiser comprar o tape e a oferta for boa ­fantástico, ótimo! A Lotus espera e - eu faço outro pra Lotus. Tudo isso será feito de acor­do com nossa vontade em conjunto, mas além disso também temos o mercado exterior para pensar. Já estou come­çando a mandar.

Este seria o seu segundo disco solo, em termos de merca­do nacional?
Com certeza...

Por que demorou tanto? Foram exatamente 20 anos...
Porque, quando eu lancei aquele disco na CBS, era a primeira vez que eu estava trabalhando sozinho. Pra mim, foi uma experiência meio estra­nha... honestamente. Naquele disco tem um pedaço de todo mundo e não tem muito de mim.

Ele saiu logo depois que os Mutantes acabaram. Você não teve muito tempo para respirar...
Sim, mas isso não era problema. O problema dele, que eu vi, foi uma coisa mesmo da caso Eu estava nos Estados Unidos, eu tinha feito o disco e ele estava pra ser lançado. Tomaz Muñoz ia assumir a presidência e eu fui chamado para conhecê-lo. Eu vim para isso e ele me disse "oi, tudo bom?" E foi isso. Eu não entendi nada. Foi numa festa, entendeu? Pra que é que me chamaram dos Estados Unidos? Então, ao mesmo tempo diversas coi­sas estavam acontecendo comigo na America. Eu tava tocando muito com Shankar, estava fazendo turnê com ele lá fora. A gota d'água foi ser convidado pra gravar um disco lá. Quando eu vi que a CBS não tava fazendo nada em relação ao disco, eu me lembro de ten­tar fazer uma reunião com o presidente e o cara me deixou três horas sentado. Eu não entendo esse tipo de coisa, en­tende? Se o cara marca uma hora co­migo, ele marca uma hora comigo! En­tende? Eu acho isso uma falta de res­peito muito grande! Então eu levantei e fui embora. Acabou o disco, saiu de catálogo. Ele saiu em CD anos depois e até hoje eu não recebi um centavo, porque a Sony liberou para um tara que não paga ninguém. (...) Bem, eu deveria proces­sar a Sony. Eu acho isso tudo uma gran­de mentira, porque a Sony prensou pra ele. Ele fez LP e depois também CD. Quer dizer, depois de a Sony teorica­mente não ter recebido pelo LP, como é que ela faria em CD? Eu falei com os advogados de lá e eles não fizeram porra nenhuma. Essa é a coisa do Bra­sil, entende? (...) Eu realmente não tava com muito saco não, eu não tenho mais muita paciência pra bobagem - princi­palmente depois de ter vivido esse tem­po todo lá fora, onde as coisas ser tão simples. Você fala as coisas e as pes­soas simplesmente não acreditam, mas é tão simples quanto você comprar uma Coca-Cola num supermercado. Fazer negócio é muito simples lá: você mos­tra, o cara experimenta e, se tiver gos­tado, compra, paga e pronto. A movi­mentação em torno do relançamento do "Mind Over Matter" nos Estados Unidos resumiu-se a quatro e-mails. O meu contrato com o Phil Manzanera foi a mesma coisa. Ele me mandou a minu­ta do contrato pelo fax, eu exibi pro meu advogado - Antonio Coelho Ribeiro, que foi presidente da PolyGram - e ele só faltou chorar. O contrato me oferecia 75% de royalties. Isso é honestidade, é por isso que eu fico puto com as com­panhia daqui.

Você consegue sobreviver com esses discos lançados no exterior?
Sim, mas eu faço de tudo. Eu faço música...

Não são os royalties dos Mutantes que te sustentam.
Não, sob hipótese alguma, de jeito nenhum. Eu sempre fui lesado nos royalties dos Mutantes. Agora, eu tenho o grande prazer de dizer que eu sobre­vivo de música no mundo... e isso é muito bom. E eu não tenho opção! O que é que eu vou fazer? Eu poderia ter dezenas de profissões paralelas, eu poderia ser engenheiro porque de tecnologia eu sei muito. Eu poderia de­senhar guitarras, com certeza. Eu sou até um bom business man, mas o que eu tenho que fazer aqui é música. Não adianta, eu sabia desde criança. Se a saída não é pelo Brasil, eu faço pela América ou pela Inglaterra ou pela Coréia. O mundo é um vasto território.

Com essa mentalidade global que você tem, você alguma vez pen­sou em fazer disco independente? Na China você prensa CD a 30 centa­vos de dólar e pode vender pela Internet a preço competitivo.
É o que a gente está pensando. Eu mesmo, sozinho, nunca pensei... Mas eu tenho visto de residente nos Esta­dos Unidos, posso importar pra lá e nun­ca pagar os preços absurdos do Brasil. Posso até abrir uma subsidiária na Chi­na e distribuir de lá pro mundo. MP3 também é uma coisa fantástica. Lem­bre-se que em 1980 as gravadoras ain­da tinham estúdios. Hoje, aqui dentro, eu dou um cacete neles... de 10 a O, com o equipamento que eu tenho em casa. O que aconteceu? Acabaram com os estúdios das companhias e elas têm que tomar muito cuidado com o MP3 ­que é uma coisa que vai balançar mui­to. Ele poderá vir a ser um desastre ta­manho, porque existe uma tonelada de dinheiro na indústria do disco e essa tonelada está manipulada basicamente por meia dúzia de pessoas no mundo. Então as companhias ficam com tudo e os artistas com uma merreca. Eu não estou nem falando do Brasil, veja George Michael e essas coisas todas. O que acontece? Vai que um cara des­ses fica puto e resolve piratear essa his­tória toda, porque é livre a coisa. "Ah é? Vamos dar uma moratória de 1 O anos nas gravadoras!" Os caras criam um grupo, tipo a United Artists em termos de cinema, e botam seus arquivos de MP3 de graça na Internet. As gravado­ras estão loucas de medo... porque jásaiu um tocador de MP3, que se chama Rio... e você pode baixar pela Internet o que você quiser. E aí, como é que fica? Ao mesmo tempo, isso é maravi­lhoso porque você pode ter acesso não filtrado à informação musical e artística por meia dúzia de pessoas que vão di­zer: "ah isso é bom, "isso presta", "isso vende", "isso é cultura". Se você tiver tempo e quiser procurar uma cantora desconhecida da Rússia, que cante rock'n'roll com balalaika, você poderá baixar o arquivo dela e ter acesso àque­la cultura. De outra forma, como teria acesso àquilo? Como é que hoje em dia a gente tem acesso a qualquer tipo de cultura, que não seja filtrada? A Internet é a única revolução que está rolando no mundo, em termos concretos... O grande problema da Internet ainda é a grande falta de organização ou até a falta de conhecimento. Como chegar a algo que você realmente esteja buscan­do? Se você quer saber uma coisa, vem 450 milhões de coisas e você não con­segue achar. A gente não deve estar sabendo usar os search engines direi­to, eu sei que tem um monte de sinais que você pode botar pra ir direto. Mas eu vou ter que estudar isso de qualquer maneira, porque eu não posso ficar pra trás nesse sentido. Então a tecnologia e a necessidade de know how é a maior arma que qualquer pessoa pode ter. Isso é uma questão para a qual eu já estou antenado, eu tenho 20 milhões de an­tenas conectadas em MP3. E eu acho que as gravadoras já estão também.

Estávamos falando do tributo aos Mutantes e que a Virgin esteve no páreo. Na época rolou um comen­tário de que ela tinha a idéia de con­tratar os três mutantes e de repente fazer alguma coisa.
Isso foi uma grande mentira, foi tudo mentira. Basicamente o que acon­teceu foi o seguinte: Guto Graça MeJlo me ligou passando as informações que haviam sido dadas a ele. Ele é meu amigo, um irmão de verdade. Eu disse: "Pô, legal, vamos ver o que é que é". Aí, quando eu comecei a pesquisar, pra ver o que é que estava por trás disso, porque até o Costa Netto disse que ti­nha inventado essa história, eu liguei pro Costa Netto - que teoricamente era o arquiteto dessa história - e eu disse: "Escuta, meu, o que é que é? Como é que é essa história? Que história é essa de Coca-Cola, que história é essa de 1 milhão de dólares?" Ele disse: "Eu não sei de nada". Eu disse "bye" pra Virgin.

A Virgin estava querendo te con­tratar, da mesma forma que havia contratado o Arnaldo.
Sem dúvida, só que pra mim o bu­raco é um pouco mais embaixo né? Se quer alguma coisa, tem que mostrar serviço né?

Se aquilo era uma canoa furada, eles iam contratar os três e Isso não ia representar absolutamente nada.
Eu acho que tudo isso na realidade provavelmente pra Virgin era só uma coisa de dizer: 'Viu? A gente contratou eles! Que legal! Como a gente é fodaço!" Seria uma grande irreal idade botar o Arnaldo no estúdio agora, tanto é que eles tentaram e não conseguiram. Infelizmente a realidade é outra. Infe­lizmente pra todos nós e pra ele, princi­palmente, porque ele é quem mais so­fre. (...) Com o Arnaldo, eu basicamen­te rompi relações porque eu cansei de ficar tomando porrada dele. Toda vez que eu me aproximava dele, era um tapa que eu levava.



Como assim tapa?
Era sempre um "chega-pra-Iá"... e eu cansei de tomar "chega-pra-lá" do Arnaldo. Ele pode ser irmão, etc e tal, mas a gente tem um limite do quanto a gente agüenta de um ser humana. Ain­da mais de graça, né? Eu acho que o problema maior é que eu lembro demais a ele do passado dele, então ele não consegue se relacionar com isso. En­tão eu desisti.

Aconteceram algumas tentativas de reunião, não?
Sim, eu tentei diversas vezes. Eu fui na casa dele depois do acidente. Quando aconteceu o acidente, eu não vim dos Estados Unidos porque ele ha­via sido internado uma vez e eu saí do Rio e fui correndo pra São Paulo, para tirar ele de lá. Quando eu cheguei lá, ele abriu a porta, chegou perto de mim e deu uma cuspida na minha cara, di­zendo que a culpa era toda minha e que a culpa dos Mutantes era toda minha. Quer dizer, ele acabou com a minha vida. Aí é uma hora de auto-defesa, eu não sou suicida. Então, quando eu vi aquilo acontecer: se eu venho abalado dos Estados Unidos pra cá, com o cara em coma, ele acorda e me diz "a culpa é sua", quem pula em seguida sou eu. Agora, ninguém consegue entender isso porque ninguém está na minha pele. Não é ninguém que está tomando as porradas o tempo inteiro, entende? Mas eu tenho que me defender, por mais doloroso que isso seja.

Na verdade, ele já tinha saído da banda muito antes.
Já... Ele pulou no aniversário da Rita, né? Não tinha lá muito a ver com a saída da banda...

Você acha que o livro do Carlos Callado espelha bem a realidade do grupo?
Eu acho que o livro do Callado eu li até certa parte e parei, para não ter que processá-lo. Pra que, com o pro­cesso, ele não tivesse mais fama e não ganhasse mais dinheiro. Porque aquilo é exploração.

Você foi procurado para depoi­mentos?
Eu dei mais ou menos seis horas de depoimento. Você acha que isso dá pra contar a minha vida?

A sua vida não, mas a história da banda... A história pública da ban­da é uma, a história íntima só se a banda contar.
Exatamente, sem dúvida. Mas quando eu vejo ele falando um monte de besteiras - que basicamente o nome pra isso é "besteira" - e botando na mi­nha boca, aí o sangue sobe.

Você já teve a oportunidade de falar sobre isso com alguém?
Não... e nem quero dar pano pra manga, porque não acho certa o que ele fez. E nem quero que ele lucre mais nas nossas costas, porque ele mesmo não fez nunca porra nenhuma. (...) Ele perdeu uma grande oportunidade de permanecer Callado.

Pra quem não vivenciou a histó­ria da banda, este livro fica sendo como a verdade.
Sem dúvida, sem dúvida. Eu sei disso, mas não sei como reescrever isso. Olha, "I'm too busy" com minha música no presente, para passar e pen­sar no meu passado. Não dá tempo pra eu pensar nisso agora, mas quem sabe quando eu estiver mais velho? É difícil esquecer daquilo tudo que aconteceu. Nada impede que eu faça cinco livros ou uma coleção sobre isso, porque fa­tos e espaço eu tenho. Eu penso nisso quando eu vejo as pessoas fazendo tan­ta merda e falando tanta besteira. A Rita é uma que me enche o saco, volta e meia está de beijos e abraços com os Mutantes, usa Mutantes pra cacete e depois xinga Mutantes até o inferno. Isso me enche muito o saco, ela cospe no prato em que comeu.

Existe uma lenda enorme em tor­no de Mutantes, porque parece que ninguém fala mais com ninguém.
Não, não é verdade. Eu sempre me aproximo da Rita. A gente teve falando bastante pela Internet, mas geralmente ela me procura quando precisa de mim. E isso me enche um pouco o saco.

E com relação às diversas tenta­tivas de reunir o grupo? Existe uma história de vocês se reunirem para um tributo ao Gilberto Gil em 1992?
Ah sim, eu tive um pau com com a Rita. Aliás, eu fiz uma músiça nesse disco a respeito desse pau e do papo que a gente teve. Everywhere I Go é uma música pra ela, assim como eu fiz Rita Lee. Tinha aquele cara, o Almir Chediak, que resolveu também fazer um "tributo" ao Gilberto Gil. Ele reuniu 60 artistas ou não sei quantos, pegou os 10% dos royalties e dividiu entre os 60 artistas e o resto ele botou no bolso. Sob hipótese alguma eu participaria dis­so. Se ele fosse honesto e pelo menos fizesse uma causa disso, dando X % pra uma instituição; se fizesse algo positi­vo, ao invés de só basicamente usar o trabalho dos outros... O problema é que eu não suporto abutre. Pessoa que suga o trabalho da outra pra viver é de uma pobreza de intelecto. Isso é uma pirata­ria, mas a Rita entrou nessa e quis fa­zer uma releitura do Bat Macumba... Porra, ainda mais do Bat Macumba, bi­cho. Aquilo é um absurdo de bom, em termos de Mutantes. Eu não concordei, principalmente por ser nesse tributo de mentira. Ideologicamente, Mutantes nunca precisou de desculpa nenhuma pra se juntar. Pra começar, eu disse pra Rita: "Olha, se você tá a fim de fazer um som... então vamos fazer um som! Não precisa de Chediak no meio, nem de Gil e nem de nada! Se você está a fim de fazer um som, vamos fazer um som!" Então essas coisas é que me encheram o saco...

E esse som nunca rolou, né? Nem numa festinha?
Não. A Rita tentou botar eu e o Arnaldo no palco do Palace naquela época... Essa história de Mutantes, de ''to be or not to be", tem muita gente pescando em lagoa errada, sabe? Mutantes não dá pra ser comprado... Nunca! Não tem nem por onde, podem me oferecer até 5 bilhões de dólares. Antes de eu e o Arnaldo sentarmos juntinhos num quartinho, para uma con­versa em que acertaremos nossos pon­teiros, nunca...

Mas e quanto a Arnaldo e Rita? Eles também precisam ter uma conversinha?
Eu acho que vai ser meio impossí­vel. Numa boa, esse papo da Rita rolou porque eu tava fazendo um trabalho com o Guto e eu tava conversando com ele justamente sobre isso. Porque é di­fícil não conversar sobre isso. Eu sem­pre achei que a doença da Rita e a do­ença do Arnaldo é basicamente a mes­ma. Quando eles ficarem velhos e gagás, talvez sentem os dois num asilo e fique tudo bem. Porque a doença da Rita é o Arnaldo e a doença do Arnaldo é a Rita. Não tenho nem dúvida. Eu liguei guei pra Rita, da casa do Guto mesmo, e disse: "Escuta, mina, você vai fazer o quê? Você vai resolver essa merda nes­sa vida ou você vai esperar voltar na próxima pra resolver isso?" Eu sei que ela tomou um pé no peito com essa. O Guto trabalhou muito com ela e eu tam­bém, então a gente conhece a Rita de trás pra frente. Eu liguei pra ela e falei basicamente: "Você vai acertar o seu problema com o Arnaldo nessa vida ou você vai esperar voltar na próxima e ter que fazer toda a merda de novo?" E ela disse que estava sonhando, que ti­nha sonhos e obviamente é impossível não ter um problema nesse sentido com os dois. Foi um caos lisérgico, nada tá resolvido.

Mas já passou muito tempo. Não dá pra resolver com serenidade?
É pior ainda. Sob hipótese alguma, a doideira piorou. É como ter um corte e fechá-Io rapidamente. A porra infec­ciona por dentro, mas aparentemente tá tudo bonitinho. Se abrir vai feder, cara, muito seriamente. O que me en­che o saco nessa história não é nem o Arnaldo, porque ele nem tem mais jei­to. Ele não está atacando ninguém, tálá na dele, e que Deus o tenha numa boa. A Rita às vezes fica hostil ou doce, de acordo com a TPM dela. Então às vezes ela xinga a gente de Caim & Abel ou de Irmãs Batista. Vá à merda, né? Ritinha, acorda né, numa boa. Eu can­sei de cantar calcinha dela, não tem o menor sentido. Eu acho muito feio, e de um tremendo mau gosto, e acho que ela devia pensar um pouco mais a res­peito disso. Porque não se deve usar as músicas de um grupo que ela tanto execrou, sempre durante sua carreira­ porque sempre foi a grande ameaça em sua carreira, tanto que não tem ninguém nos Estados Unidos se preocupando com Rita Lee e sim com Mutantes. Não tem como eu dizer que o meu trabalho vá ser alguma vez mais importante do que aquele que eu fiz com os Mutantes. Isso seria uma ilusão absurda, eu te­nho meus pés muito bem plantados no chão. É ridículo a Rita sonhar que o trabalho dela vá ter importância sócio-cul­tural maior que Mutantes. Ela pode ven­der 400 mil vezes mais que os Mutantes, mas o que vai durar são outros quinhen­tos. Quem está na Larrousse são os Mutantes - não sou eu, nem ela e nem o Arnaldo. Então quem não pensa, não sabe e não fica feliz com o fato de ter participado de algo tão fortuito - porque é uma sorte divina -, tá na verdade amargando uma certa dor de corno. Se incomoda tanto, tá sempre tendo que alfinetar... dizendo que não'sabia se se casou comigo oi.! com o Arnaldo. Vá, que coisa ridícula dizer que tirou no palitinho. Dá um tempo, isso é de um mau gosto, é um ataque desnecessário ao meu irmão. Ela casou com o cara, bicho.

Você falou que teve um momen­to em que desistiu dos "tapas" que seu irmão lhe dava. Isso foi quando?
Depois que o Arnaldo saiu da ban­da, eu cansei de procurá-lo para que ele voltasse pra banda. Agora em 1990 e pouco, eu fui procurá-lo. Ninguém con­segue entender isso, até que vê.

Ele me parece ser tão pacífico...
Pois é, mas bota ele do meu lado pra você ver. Ele não gosta de mim. O problema é muito difícil, é muito difícil pra um irmão entender que o outro não gosta de você. Por mais que eu goste dele. Imagina como foi o meu relacio­namento com ele. Você nunca ficou to­mando ácido com seu irmão durante anos e se vendo espiritualmente, de ponta a ponta. Quer dizer, é uma coisa muita difícil. Eu sou um espelho limpo demais pra ele. E vice-versa. A Rita também, então é muito difícil solucio­nar uma questão dessa - principalmen­te quando as pessoas demonstram ta­manha imaturidade. A Rita, até hoje falando essas bobagens, eu não consi­go acreditar. Quando ela falou aquilo, eu disse: "Eu não quero nem ler, bicho". Eu já estou tão de saco cheio de ouvir isso...

O problema dela com ele é de­les...
É, mas só que ela me mete no meio!

E quanto ao problema dele com você ou seu com ele? Isso é uma coisa que você parece ter desistido de solucionar. Essa sua desistência é pra próxima vida? Eu estou te de­volvendo a pergunta que você fez pra Rita.
Não, porque eu fiz tudo o que eu podia fazer... e Deus é a minha teste­munha. Até uma Gibson está compra­da aqui, olha só. Pode olhar aí atrás, tem uma 335 que ele disse que não fa­lava comigo se eu não tivesse uma. Lembra? Bom, aqui está uma 335 ma­ravilhosa. Quer dizer, eu não comprei a Gibson por causa dele. Numa boa, eu comprei a Gibson porque eu gosto dela... Agora, não é uma guitarra que eu use. Não tem guitarra melhor que aquela que meu outro irmão fez. (...) Arnaldo foi uma influência positiva na vida de bilhões de pessoas, mas não é por isso que ele vai ser positivo pra mim. Eu tenho que pensar em mim e cuidar da minha saúde mental, da minha es­trutura interna, da minha família e de tudo o que me dá prazer. Lourdinha, minha mulher, ficou me enchendo o saco durante um ano e meio para que eu fosse lá. Eu fui... mas eu não quero tocar nesse assunto. Quando eu vi mi­nha mãe numa situação difícil, como ela estava vivendo em São Paulo, eu cons­­truí uma casa pra ela aqui do lado. É o mínimo que eu posso fazer. Porra, ela dedicou pelo menos 13 anos da vida dela pra me criar. Vou fazer o que? Vou largar ela lá? Então humanamente tem diversos aspectos com os quais eu não consigo concordar.

A música que você fez pra ele e que eu ouvi num documentário meio­ inédito sobre o Arnaldo, você tam­bém a gravou para o novo disco?
Nunca, eu gravei ali e só. Fiz uma fitinha e dei pra ele. Eu não pensei em gravá-la, eu nem lembrava mais dessa música. É toda em 5 x 4, né? Essa música eu fiz no dia em que eu soube que ele estava em coma.

Com relação a estes tributos e idéias em cima de Mutantes, você controla muito bem a coisa? Estou errado?
Eu acho que você está errado. Ge­ralmente eu sempre libero numa boa, eu não tenho nada contra. Eu quero mais é que as pessoas se divirtam. Ago­ra, entre as pessoas se divertirem e as pessoas nos usarem, são outros qui­nhentos. Quando eu vejo a Marisa Mon­te usando a nossa imagem, e o pessoal da Conspiração ligando pra gente e exi­gindo: "Mas como vocês ainda não man­daram a permissão?" Pô, dá um tem­po, né? Isso era caso da Marisa pegar o telefone, ligar e dizer: "Escuta queri­do, meu irmão, você não acha que se­ria legal?" Não é por aí, o approach é muito mal feito. Os Paralamas também usaram agora há pouco no HBO, mas é como se a gente fosse obrigado a fazer alguma coisa a respeito - dar e não co­brar nada. Quer dizer, eu não consigo entender muito bem isso.

Você está familiarizado com o sistema americano e lá não tem porque fazer nada de graça.
Não é nem isso, não é nem o caso do dinheiro. É a questão da falta de profissionalismo do brasileiro, queren­do sempre fingir ser como o profissio­nal americano. O profissional america­no nunca iria te pedir uma coisa sem te pagar. Como? Não existe contrato sem valor! Sem dúvida, é lógico! Faltou no caso o jogo de cintura brasileiro, de che­gar e dizer: "Meu bem!" Imagina se a Gal, por exemplo, resolvesse usar uma coisa dos Mutantes. A gente não se fala há 20 anos, mas você acha que a Gal não iria dar um telefonema pra cá? "Querido, que saudade..." Sabe porque? Porque isso ia partir naturalmente do coração dela - ou do Gil, do Caetano etc. Agora vem os carinhas novos e usam a gente como se estivessem "ho­menageando". Entende? Isso enche o saco, realmente. E por isso que eu te digo, nesse tipo de negociação toda não me faz diferença - eu cago e ando, não preciso. O que a gente fez tá muito bem feito.. .

Tá muito bem feito mas eu acho que tem muita gente com vontade de conhecer isso, independentemente de ser a gravadora multinacional qu, vá ganhar "horrores de dinheiro". E o lado histórico, porque os discos não estão na loja...
Se você for olhar um pouco mais profundamente isso, é uma coisa ridí­cula que a minha filha tenha que lidar com ídolos mortos. Eles estão de Mutantes, Jeff Beck etc, porque atual­mente a substância da qual a música e a cultura são feitas é zero. Estou falan­do de tchan, estou falando' de tudo o que está acontecendo. Estou falando de Mariah Carey. O Tchan é o que? Tudo bem, Carla Perez foi representar o Bra­sil em Montreux... Eu não sei como. Ela "assobiou"... pelo tchan? Como é que foi? Fez "be-bop"? Peido? É um absur­do, bicho! Tenha um pouco mais de amor pela pátria, sabe! E constrange­dor, afinal nessa terra nós temos Hermeto Paschoal, bicho. Tenham ver­gonha na cara, né? Quer dizer: legal, ganhem dinheiro... mas ganhem muito dinheiro. Mas tenham também um pou­co de senso. Na América pode até pin­tar alguma coisa que venha a dar muito dinheiro, mas eles preferem evitar para que não percam a característica do que estão fazendo. (...) Quando a PolyGram relançou todos os discos dos Mutantes em CD, eu me senti um ladrão... por­que eu sabia que eu estava roubando espaço de todo mundo aqui. Porque eles não iam lançar ninguém... e eu acho isso uma grande sacanagem!

Como assim?
Aqui eles lançam tantos produtos por ano e naquele ano poderiam ter relançado um de cada vez, a cada 4 meses. Mas não, lançaram tudo de uma só vez. Sejamos realistas, o que mais eles lançaram além de Mutantes naque­le ano? Tá entendendo? O que eu es­tou querendo dizer é: cadê os novos Paulinhos Moskas, cadê as novas ban­das? Cadê os carinhas novos, pra mi­nha filha poder curtir? Ao invés de po­der ouvir o reflexo dessa geração, os coitados estão tendo que olhar pra trás - pros meus valores, que não têm porra nenhuma a ver com a situação deles.

Mas que tem tudo a ver com a história cultural do país.
Pode ter com a história, mas que então compre um livro.

Ah, música é pra se ouvir e não pra se ler.
Tudo bem. Eu sei disso, eu acho tudo isso do caralho. Ótimo, é fantástico que tenha todos os discos dos Mutantes e que eles vendam milhões. Mas que não tirem espaço dos outros. Eu acho que de certa forma tira sim, não só em termos de Mutantes. Só exis­te uma razão pela qual a juventude in­teira do mundo está olhando pros anos 60: é porque hoje em dia ninguém está satisfeito. E se não estão satisfeitos, sinto muito; não é culpa da juventude e da testosterona dos atuais teenagers. Hoje em dia o cara não toca guitarra, hoje em dia o cara pensa se é politica­mente correto musicalmente. Isso é uma piada, entende? Esse disco que estou fazendo, por exemplo: é comple­tamente incorreto, politicamente. Eu usei tudo aquilo que eu tenho direito, mas tudo é uma questão de bom gos­to.

Então por que é politicamente incorreto?
Por causa de tudo o que estou fa­lando nas letras.

O lançamento de "Tecnicolor" não vai impedir ou atrasar nenhum outro lançamento da gravadora.
Eu sei, mas a mídia inteira - que poderia estar dando espaço para uma banda fresquinha, novinha, ou para um cara ou para uma menina -, o cara vai escolher o que? O novato ou uma coi­sa certa? Eu acho tudo isso fantástico, mas eu só queria uma resposta: por que não existem ídolos atuais, pelos quais a própria juventude tenha um puta res­peito? Você vê a garotada falando so­bre a bosta que é Oasis - os caras fi­cam copiando os Beatles e dizendo que são melhores que eles. Quando teve 'Woodstock II", eu estava na casa de um amigo meu em Miami e as crianças dele ficaram assistindo pela MTV. A idi­ota da menina só dizia: "Olha, tá cho­vendo! Tá cheio de lama, que merda, que horror!" Os outros carinhas estavam num outro cômodo, com o vídeo cas­sete rolando o primeiro Woodstock. Eles leram tudo, sabiam como era tudo atra­vés dos livros. Por que?

James Dean vende poster para a parede dos quartos de adolescente até hoje.
Sim, mas quem é o nosso James Dean de hoje? Brad Pitt? É dose... Onde está? Eu quero! E uma questão interna minha a minha necessidade de me re­novar, de morrer e ressurgir da minha própria incapacidade e da minha burri­ce. Para isso, eu preciso de material. Como é que eu vou ter acesso ao ma­terial, se não me é dado? Entende? Eu fico puto. Eu quero, eu tenho sede de revolução e de novidade e de movimen­to. E não tem porra nenhuma! Isso é muito chato!

Falando objetivamente sobre o "Tecnicolor", como você o via? Éle estava no subsconsciente, como se vocês sempre tivessem um disco guardado.
Eu nunca pensei no "Tecnicolor". Pra mim, quando foram utilizadas as quatro músicas no "Jardim Elétrico" foi aquilo lá.

Ele era pra ter sido um disco. Por que é que o projeto morreu na época?
Não sei. Que seu saiba, depois que a gente voltou de lá - e eu vim a saber isso depois, olha que jóia eram o Arnaldo e a Rita -, eles chegaram pra mim e disseram que a PolyGram da Inglaterra queria nos contratar... pra gente ficar morando lá.

Para que vocês cantassem em inglês e trilhassem uma carreira por lá.
Sim, era 1970 e os idiotas disse­ram "não" sem falar comigo. Porra, a gente voltou pra cá pra tocar no "Som Livre Exportação", bicho! Puta que o pariu, eu acho que eu sei porque é que eles não falaram nada comigo...

Por que?
Porque eu teria ficado! Eu não pen­sava meia vez, talvez até largasse a banda. Eu me esqueci do disco, mas sabia que ele existia. Mas, como eu te disse, eu estou muito ocupado fazendo coisas agora... e não estou perdendo tempo e pensando em coisas que acon­teceram antes. Isso pra mim é passa­do, quem tem que lidar com isso é a PolyGram e quem tiver realmente inte­resse de que isso saia. Eu tenho inte­resse, mas em que é que realmente vai me influenciar hoje?

Em mídia...
Porra... mas não é por aí. É uma mídia que me interessa, mas será que realmente me interessa? Eu não estou a fim de ser lembrado como uma está­ tua.

Sim, mas você se isolou. Você veio morar no alto de uma montanha, ninguém tem seu telefone!
Com licença, eu tenho uma músi­ca no disco que fala sobre isso: "Estou na montanha, tocando guitarra! É aqui que eu vivo, na serra de Araras! Bem perto do céu! Fazendo amor com a mi­nha mulher! E ensinando minha filha o caminho do bem! Entre o mel e o féu! Não gosto de samba, sou doente do pé! Nasci na Pompéia, sou de São Paulo! Da Praça da Sé, yeah! Aqui na monta­nha, me lembra Mutantes! Um gosto de ácido cítrico, vítrico! Caleidoscopicamente mortal! I'm rock and rollin'" Agora, se eu não estou fa­zendo isso aqui, pra começar aonde eu vou tocar? Me diga! Eu já montei ban­das aqui... mas é complicado. Se eu for montar uma banda pra fazer um show, é a coisa mais absurda do mundo. Não é nem questão de ser caro, porque todo mundo vai tocar de graça. Recebo con­vites e tal, no Nescafé Blues eu tava doente pra cacete e foi uma merda pra mim. O tecladista ficou com úlcera e não pode vir, então o show foi um de­sastre. Além do mais, o que eu estaria fazendo lá? Eu não tava fazendo blues... Olha, eu sempre digo "sim"... Eu gosto de ser bandleader, essa é a minha história. Jam é uma coisa muito fácil, quando a gente é convidado por uma banda. Mas eu não sei se tenho muito saco pra isso, depende da banda né? De que adianta tocar pela metade? Você quer ir mais fundo e não vai, aí é chato. Em termos de fazer uma banda e tocar, sim, é lógico que eu quero to­car. Agora há dois anos trás, eu liguei pra uns caras pra montar uma banda mas tive o ombro congelado e fiquei um . ano inteiro fazendo fisioterapia. Eu já tinha tido isso antes, quando morava no I Rio dá Janeiro. Nem os médicos souberam explicar, mas eu perdi um pouco de movimento. Eu pegava minhas mãos nas costas, agora não pego mais. Às vezes, pra tocar dói um pouco. Mas eu não tô nem aí, pintou esse disco e eu resolvi fazer esse disco. Eu fiz o disco, mas o que vem aí pela frente eu não sei. Eu fiz até onde eu podia fazer, agora a vida toma conta. O próximo passo não cabe mais a mim. Por exemplo, você acha que na época dos Mutantes a gente pensou em alguma coisa? A gente foi fazendo...

Vocês nem sabiam que eram da Jovem Guarda...
Sem dúvida. Falando por mim, quando eu quis tocar com o Gil, eu quis s tocar com ele porque - quando ele me mostrou no violão Domingo No Parque - aquilo me estourou a cabeça. Aquilo me arrebentou a cabeça e eu disse: "Puxa, que coisa do caralho!" Eu não vi nada de Beatles lá. Numa boa, hones­tamente. Eu vi um berimbau lá, eu não vi nada de Beatles lá. Eu não sei qual é o enfoque dele com relação a Beatles dentro daquela música, mas eu não vi. Os arranjos não têm nada a ver, mas para mim foi um negócio muito legal porque era novo. E é disso que eu vivo o tempo inteiro atrás e é por isso que eu fui pra América. O que é que eu ia fazer no Brasil, depois de ter parado os Mutantes? Qual seria o meu próximo passo? Ir tocar com Caetano, ir tocar com Gil? O que é que eu ia fazer? Ter uma carreira solo? Boring! Ao invés dis­so, eu fui tocar com o pessoal da Amé­rica. Eu fui aprender, isso é que é o ba­rato. Quando você pára de aprender, bicho, é muito chato. É igual a mulher. Quando você parar de aprender o cor­po da tua mulher, bicho, aí fudeu né? Aqui é "ai" e ali é "ui"? Porra, não pode. Eu nunca me encontrava com brasilei­ro lá, eu tava sempre com americanos. O único brasileiro com quem eu mais trabalhei foi com o Deodato e com a Flora Purim e Airto Moreira. Eu apren­di muito com os três, foi ótimo. Com Deodato eu gravei muito, mas com Flo­ra e Airto a gente tocou a América umas três ou quatro vezes. Foi ótimo... Airto é um gênio...

O próximo passo agora então é "Tecnicolor" .
Sim, mas isso é com a PolyGram. Eu vou me mexer com meu próximo disco. É aí que vou botar minha ener­gia - está mixado, masterizado e vai se chamar "Estação da Luz". Estamos pen­sando na capa, vai ser um disco legal. Levei um ano pra fazer, gravei todo ele aqui em casa. Mixei aqui também, a sala dá pra isso.

Sendo você o último mutante, qual é a sua idéia de representar a banda num eventual lançamento ou mesmo de trabalhar em cima de ma­terial inédito, mixando ou remixando ou acompanhando remasterização?
Isso seria uma coisa interessante, porque aí seria uma coisa nova. Seria realmente novo, tem uma porrada de coisas que realmente são inéditas até pra mim. Eu me lembro de cada instan­te do "Tecnicolor", mas estas fitas que eu tenho guardadas são praticamente virgens pra mim. Seria um negócio le­gal, a cada segundo eu tomaria um tapa. Ia ser um barato, ia ser bom pra mim em termos de me ver de novo. É bom de vez em quando você se colocar no seu próprio sapato de quando tinha 13 ou 14 anos, pra ver se você tava indo e se você hoje está onde você estava mirando na época.

Que tipo de material você imagi­na estar registrado nessas fitas?
Algumas coisa eu já escutei. Tem shows ao vivo, desde 1968... Tem gra­vação da gente no Ronnie Von, o Cláu­dio gravava da TV num Sony 7 1/2. Era mono, mas tem muita coisa legal. Tem ensaios do "OAEOZ", eu me lembro de dizer que ia tomar um ácido quando ain­da eram 10 horas da manhã. Muita coi­sa da Cantareira, eu tenho uma porra­da de material. Sei lá se eu quero fazer isso, qualquer coisa que seja um pé no saco eu não estou a fim de fazer. Se envolver terceiros e as pessoas não souberem de porra nenhuma do que estão fazendo, se tiver aquelas punhetações de gravadora, sozinho eu não gostaria de fazer. Eu gostaria de fazer com gente, porque é muito chato trabalhar sozinho. Por morar aqui no alto da montanha, muitas vezes sou muito obrigado a fazer isso. Não tem como chamar o Liminha pra ficar aqui, tocan­do baixo um mês e meio, porque ele não vem. Eu vou tocar com quem, en­tão? O Jamil Joanes é do caralho, mas ele não toca na mesma praia que eu toco. Então eu preciso de gente que te­nha um vocabulário correto. Pra traba­lhar nos tapes dos Mutantes, teria que ser um cara com um puta bom humor e que seja um cara legal, que não enches­se o saco e transformasse a coisa num grande prazer. Eu não tenho tanto ape­go assim por essas coisas...